domingo, 15 de outubro de 2017

Administração Pública e Direito Administrativo no Estado Liberal, no Estado Social e no Estado Pós-social

Para um completo entendimento do atual sistema de Direito Administrativo e do seu funcionamento, cabe antes de mais avaliar a sua evolução histórica, procurando entender as razões justificativas do seu atual regime.
A evolução histórica do Direito Administrativo pode ser dividida em três grandes épocas: Estado Liberal, Estado Social e Estado Pós-social, de acordo com a terminologia adotada pelo Professor Vasco Pereira da Silva. Cabe então analisar cada um destes períodos históricos:
O Direito Administrativo surge como a grande consequência da revolução liberal. Este foi um compromisso relativo ao funcionamento dos centros de poder entre a procura da limitação do poder estadual, consagrada nos princípios revolucionários, e o interesse da nova classe dominante que gerava um poder mais temível do que o do Estado absoluto. Há assim uma continuidade quanto à Administração Pública entre as velhas instituições do Antigo Regime e as novas instituições liberais, sendo que as anteriores passam a ser enquadradas nas conceções do liberalismo político.
O modelo de administração pública que surge carateriza-se por:  
  • Assumir o ato administrativo como modo quase exclusivo de agir, sendo a manifestação autoritária do poder estadual quanto a um particular determinado. Este concilia o autoritarismo do exercício de um poder do Estado (sendo um ato unilateral cujos efeitos são suscetíveis de ser impostos aos particulares por via coativa) com a garantia dos direitos dos cidadãos, decorrente da legalidade (na medida em que abre a via de acesso à Justiça, permitindo a defesa dos privados relativamente às lesões administrativas lesivas dos seus direitos).
  •  Assumir uma estrutura concentrada e centralizada da organização administrativa. Esta é a mais marcante caraterística deste regime. Este modelo de organização justifica-se pelas exigências a que liberalismo procurava responder. A burguesia necessitava de uma estrutura administrativa racional e centralizada, para eliminar as disparidades locais e conseguir a formação de um mercado nacional, bem como para eliminar os entraves feudais. Precisava também de uma Administração robusta e enérgica, que criasse infraestruturas e serviços necessários para potenciar a atividade económica e que permitisse a instauração de uma ordem pública vigorosa. A Administração adquire, então, uma estrutura unificada e hierarquizada, em que as competências dos diversos órgãos se encontram escalonadas e encadeadas. O centro da administração hierarquizada seria o Governo. Ao adotar um modelo de justiça delegada, o Estado liberal procurou conciliar os interesses da Administração (que teria primazia pela fiscalização, sendo que o contencioso seria um auto-controlo da Administração, procurando atingir a legalidade e acomodar o interesse público) com a proteção dos particulares (realizada sobretudo através da lei. A Administração era vista como agressiva e potencialmente lesiva dos direitos dos cidadãos, pelo que devia submeter-se ao princípio da legalidade, enquanto manifestação da vontade geral);
  • Assumir um sistema de justiça delegada, no que toca à fiscalização.

A Administração do Estado liberal é encarada como uma Administração agressiva, representante de um Estado forte, que prossegue o interesse público e, portanto, dificilmente lhe pode ser oposto um direito de um particular.
De acordo com a conceção liberal, o problema da liberdade individual colocava-se, sobretudo, em face do Estado, sendo a não intervenção deste e a separação radical entre Estado e Sociedade a melhor garantia de liberdade política. O Estado relacionava-se com a sociedade por intermédio da lei geral e abstrata, que definia os limites dos direitos individuais em razão do interesse geral e, simultaneamente, balizava a atuação da Administração Pública. Desse modo, a garantia da liberdade individual era essencialmente realizada através da lei. A crença no valor da lei conduziu a uma desvalorização da figura dos direitos subjetivos pela dogmática jurídico-administrativa do Estado de Direito. O Estado era Estado de Direito porque a formação da sua vontade se fazia segundo regras jurídicas, uma vez que ele era o próprio Direito.
O compromisso entre uma noção liberal de poder político e uma noção autoritária de Administração era dogmaticamente traduzido pelo reconhecimento de direitos políticos e civis, valendo contra o poder político e nas relações interprivadas, mas simultaneamente pela negação da existência de direitos subjetivos nas relações entre os particulares e o poder administrativo. Dividia-se aqui a doutrina: enquanto uns consideravam que o particular não era titular de direitos subjetivos perante a Administração, sendo entendido como um súbdito da Administração toda-poderosa, ao serviço da qual se encontra, podendo os seus interesses de facto vir a ser ocasionalmente protegidos pelas normas jurídicas, outros consideravam que o particular podia ser titular de posições jurídicas substantivas em face da Administração, mas o conteúdo desses direitos subjetivos em nada se distinguia das normas jurídicas objetivas, não sendo eles mais do que meros reflexos do direito objetivo, sendo esta última defendida pelo Professor Marcelo Caetano.
Outra característica marcada pelo Estado liberal era a natureza puramente executiva da Administração, limitada à concretização das opções contidas nos textos legislativos. Esta ideia não era compatível com a liberdade de escolha enorme que a Administração possuía, logo a doutrina vai olhar com desconfiança para a discricionariedade, mas esta vai ser aceite como uma espécie de criminalidade tolerada.
A passagem do Estado Liberal para o Estado social, teve como consequência a necessidade de mudança de paradigma da Ciência do Direito Administrativo. A mudança de modelo de Estado representou o fim da “idade de ouro” o conceito clássico de ato administrativo, obrigado agora a defrontar-se com realidades diferentes daquelas para as quais tinha sido criado.
O Estado descobre então uma nova vocação. A questão social e as crises cíclicas do capitalismo, dos finais do séc. XIX e inícios do séc. XX, vieram colocar novos desafios ao poder político, chamando o Estado a desempenhar novas funções de tipo económico e social. Podem distinguir-se 3 fases deste novo tipo de Estado: a fase de intervenção estadual na regulação da relação laboral; a fase de Intervenção Generalizada do Estado no Funcionamento da Economia; e a fase do Apogeu do Estado Social, surgida a partir do Final da Segunda Guerra, em que o Estado social apresenta-se como um aparelho prestador.
Com o Estado social, as funções do Estado vão sofrer uma dupla transformação, verificando-se, em simultâneo, o aumento da intensidade das funções tradicionais e o surgimento de novas tarefas nos domínios económicos e sociais, o Estado social faz sua missão de prover ao conjunto da sociedade os sistemas vitais e de prestações que garantem o seu funcionamento e um nível mínimo de bem-estar. O Estado social é, pois, antes de mais, um Estado de prestações.
Surge, então, o Estado Administração, que tem como principal missão a de assegurar o bem-estar dos indivíduos em sociedade. A Administração passa de agressiva a prestadora, aumentando a dependência do indivíduo relativamente aos poderes públicos.
Com o Estado social desaparece a clássica separação entre Estado e sociedade, e entre Administração e privados. Uns e outros encontram-se relacionados por relações duradouras, que implicam uma interpenetração e colaboração recíprocas. Essa alteração do relacionamento entre a Administração e os privados implica o reconhecimento de direitos subjetivos dos particulares perante os poderes públicos. O particular coloca-se, em face à Administração, como um sujeito de direito perante outro, estabelecendo, de igual para igual, uma relação jurídica. O reconhecimento do direito dos cidadãos surge como uma exigência da opção constitucional por uma ordem jurídica assente na dignidade da pessoa humana cujos direitos fundamentais vinculam diretamente os poderes públicos.
Com a passagem ao Estado Social, a administração pública deixa de ser concebida como meramente executiva para se tornar cada vez mais uma atividade prestadora e constitutiva. A Administração prestadora chamou a si um conjunto de tarefas que não se esgotam na noção de aplicação da lei ao caso concreto, ou de execução do direito, mas que implicam a ideia de uma capacidade autónoma de concretização dos objetivos estaduais. Por um lado, cresceram, em número e em importância, as atividades de pura administração, sem nada de jurídico, por outro lado, no que respeita à atuação jurídica da Administração Pública, a possibilidade do legislador poder prever todas as situações e regular todas as matérias, assim como o crescimento das tarefas administrativas, implicou a atribuição de um maior ou menor grau de autonomia às autoridades administrativas, na sua tarefa de satisfação das necessidades coletivas, tornando a sua função muito mais criadora.
Num Estado de Direito material, outra é a perspetiva do princípio da legalidade, que surge na sua aceção mais ampla, abrangendo quer os poderes discricionários quer vinculados, e implicando não a mera submissão à lei em sentido formal ou material, mas todo o Direito. O princípio da legalidade constitui o fundamento, o critério e o limite de toda a atuação administrativa. Por outro lado, a submissão ao direito vai muito além de um entendimento positivista da ordem jurídica, implicando a submissão a princípios gerais do Direito, à Constituição, a normas internacionais, a disposições de caráter regulamentar, a atos constitutivos de direitos.
No modelo de Estado social, a atribuição de poderes discricionários à Administração Pública é imprescindível para assegurar uma decisão correta no caso concreto. Num Estado de Direito, o poder discricionário deve ser entendido como uma forma da administração manifestar a vontade do ordenamento jurídico relativamente a uma situação concreta. A lei não pode prever todas as situações, pelo que à Administração é, muitas vezes, atribuída uma possibilidade de escolha entre várias situações legalmente possíveis, a fim que sejam os órgãos administrativos a concretizara vontade legislativa, em função das situações jurídicas que vão ser reguladas.
Aplicar a lei já não é, então, uma simples tarefa de subsunção lógica, mas uma atividade criadora. O aplicador do direito tem uma função verdadeiramente criadora, reconstruindo o espírito do sistema e integrando aquela concreta manifestação de vontade do legislador no âmbito mais vasto do ordenamento jurídico. Entendido o poder discricionário como modo de realização do direito, e não enquanto liberdade de escolha extrajurídica, daqui resulta necessariamente uma maior amplitude de controlo jurisdicional.
O Estado social implicou ainda profundas transformações no que respeita à organização administrativa. A administração unificada e hierarquizada deu lugar à Administração descentralizada e desconcentrada.
Assim, da Administração como bloco unitário passou-se a uma pluralidade de Administrações, e a necessidade de prosseguir fins estaduais muito díspares vai implicar a necessidade de proceder à repartição de competências decisórias entre os diferentes órgãos administrativos. A Administração Pública deixou de ter um centro, não apenas em virtude da partilha interna de competências decisórias, e da distribuição do poder por entidades distintas, mas também em virtude das novas tarefas nos domínios da saúde, educação, segurança social, que o Estado prestador chamou a si, e que são desenvolvidas em função da coletividade.
Ao nível da fiscalização da Administração verificaram-se profundas transformações. O período clássico pode ser caracterizado como a fase do pecado original do contencioso administrativo, devido à íntima ligação existente entre órgãos fiscalizadores e autoridades administrativas, que fazia dele um contencioso privativo da Administração. Agora, dá-se o batismo do contencioso administrativo, como afirma o Professor Vasco Pereira da Silva que consistiu na sua jurisdicionalização plena, desaparecendo as ligações entre órgãos da Administração e tribunais administrativos.
O aprofundamento da noção de Estado de Direito, que vem associada ao Estado social, vai obrigar a que os litígios entre a Administração e os particulares sejam julgados por verdadeiros tribunais. É assim que em todos os países europeus se vai verificar o da ligação da Administração e do contencioso Administrativo, dando lugar a uma plena jurisdicionalização da fiscalização dos atos da Administração.
O ato administrativo já não tem só por missão determinar autoritariamente o direito aplicável ao particular, mas também a prossecução de interesses públicos através da satisfação de interesses dos privados, a quem presta bens e serviços. Figura típica do domínio da Administração prestadora é o ato administrativo favorável aos particulares, ou constitutivo de direitos. O particular, numa situação de dependência perante a Administração, não somente deseja que a Administração atue, como solicita mesmo essa intervenção. O ato administrativo passar a ser igualmente um instrumento de satisfação de interesses individuais.
Houve, de facto, uma expansão da proteção judicial no domínio da Administração prestadora, mediante o alargamento da categoria dos atos recorríveis para abranger os atos negativos.
Também, a possibilidade de o particular poder reagir contra atitudes omissivas ilegais da Administração é de grande importância, sobretudo, a partir do momento em que a Administração passa de agressiva a constitutiva, sendo chamada a desempenhada a chamar uma atividade prestadora favorável aos particulares.
Na organização administrativa assiste-se não apenas ao crescimento do tradicional aparelho administrativo burocrático, como à criação de entidades de carácter público que atuam segundo o regime de gestão privada, como ainda ao surgimento de novas modalidades de Administração que adotam formas jurídico-privadas, de forma a conseguir uma mais adequada realização dos fins públicos.
A Administração concertada manifesta-se, além disso, na procura constante da aceitação e da consensualidade, mesmo quando sejam utilizadas formas de atuação de tipo unilateral. Busca do consenso que implica a existência de mecanismos institucionalizados de audição e de participação dos interessados na formação de decisões administrativas.
Em resultado de todas as transformações ao nível das formas de atuação da Administração Pública, o ato administrativo perdeu a sua posição de quase exclusividade no âmbito das relações Administrativas. Está-se perante uma crise do ato administrativo, a qual não resulta apenas da proliferação de novas, e muito frequentes, formas de atuação distintas, mas decorre também de se ter passado a considerar a decisão final da Administração apenas como um momento da atuação administrativa, que tem de ser entendida em função daquilo que a precede, assim como das ligações jurídicas a que dá origem, ou de que é resultado, e não como uma realidade isolada, final e perfeita.
A partir da década de 70, começa a ser evidente o esgotamento do modelo de Estado de Providência, incapaz de continuar a dar uma resposta satisfatória aos mais recentes problemas colocados pela evolução da sociedade. A crise do Estado Social surge, então, em resultado de: aumento das contribuições dos indivíduos para o Estado, mais do que proporcional às prestações dele recebidas, gerador de um sentimento de desconfiança e de insatisfação dos privados, que se traduz num défice de legitimação dos poderes públicos; o acréscimo de Estado nem sempre veio ligado ao aumento do bem-estar individual, mas antes a um desmesurado crescimento da burocracia; o risco da menor imparcialidade do Estado; o alheamento dos cidadãos em face dos fenómenos políticos.
Existe, por um lado, um sentimento de satisfação e de plenitude históricas mas, por outro lado, um sentimento de insatisfação, desassossego e insegurança decorrente do paulatino esgotamento do modelo de desenvolvimento e progresso. O que desapareceu não foi, sem mais, o Estado, mas um certo modo de o entender. O Professor Vasco Pereira da Silva destaca o surgimento de um novo modelo de Estado, que representa uma tentativa de responder aos problemas com que se defrontam as sociedades atuais.
O modelo do Estado pós-social trouxe consigo preocupações novas, tais como a necessidade de problematização do crescimento do Estado e das funções por ele desempenhadas, procurando reequacionar o papel do Estado e redimensionar a extensão do seu aparelho; o realçar da importância da participação dos indivíduos na tomada de decisões, a importância dos direitos dos indivíduos, como meio de defesa deste contra todas as formas de poder. Novos são, também, os desafios que se lhe colocam e novas as necessidades a que tem de dar resposta. O atual modelo pode, então, ser caracterizado pela coexistência de opções em princípio contraditórias: por um lado, a generalização e a enfatização de valores claramente individuais, por outro, a persistência e insistência em valores de solidariedade social.
Relativamente à Administração Pública, opta-se por formas de atuação concertadas. Característico desta moderna Administração concertada é a crescente dificuldade, não só da autónoma definição do interesse público, mas especialmente da sua realização pela via autoritária e unilateral. De uma forma crescente, portanto, o interesse público vê-se na necessidade induzir a colaboração da economia privada e chegar a fórmulas de concerto, transação e cooperação com grupos sociais e agentes privados.
Mas as transformações do Direito Administrativo dizem igualmente respeito à importância renovada do papel dos particulares, não apenas enquanto destinatários e comparticipantes da atuação administrativa, mas também enquanto autónomos sujeitos de um verdadeiro relacionamento jurídico com a Administração Pública.
Todas estas manifestações se manifestam no domínio do contencioso administrativo. Os tribunais Administrativos são chamados a refundar o Direito Administrativo, já não enquanto Direito especial da Administração, mas enquanto Direito dos particulares em face da Administração. Daí que as modernas constituições do Estado de Direito tenham reafirmado a natureza jurisdicional do contencioso administrativo e acentuado a sua função de proteção dos direitos dos particulares nas suas relações administrativas.
Na verdade, aquilo que caracteriza a Administração Pública de hoje, mais do que cada um dos seus atos isolados, é a dimensão social dessa atividade, são os efeitos que ela produz relativamente à sociedade no seu conjunto.
A atividade administrativa complexifica-se e os seus instrumentos de atuação extravasam dos esquemas tradicionais, implicando o surgimento de um conjunto de bens jurídicos que não se enquadram satisfatoriamente, nem no esquema da Administração agressiva, nem do da Administração prestadora.
A atividade administrativa vai tornar-se num mecanismo de composição dos interesses, que se manifestam no procedimento, e que os órgãos decisores devem regular, de maneira a tornar a decisão mais adequada e que melhor salvaguarde os direitos subjetivos e os interesses em presença.
A nova realidade administrativa é caracterizada pela multilateralidade, pelo alargamento da proteção jurídica subjetiva, pela durabilidade das relações jurídicas, pelo esbatimento da diferenciação entre formas de atuação genéricas e individuais.
A multilateralidade surge como a característica mais marcante da Administração do Estado pós-social. As decisões administrativas, típicas da administração prospetiva ou prefigurativa, não dizem respeito a um relacionamento meramente bilateral entre os privados e os órgãos decisores, mas correspondem antes a um relacionamento multilateral, uma vez que produzem efeitos suscetíveis de afetar um grande número de sujeitos.
No domínio da moderna Administração de infraestruturas, mesmo as decisões individuais podem possuir uma dimensão social, e o ato administrativo deixa de ser apenas uma forma de atuação relativa a um concreto particular, já que produz efeitos que também afetam outros sujeitos. Esta multilateralidade implica, por conseguinte, a necessidade de alargamento da proteção jurídica subjetiva perante a Administração, o que pode ser conseguido, quer através do alargamento da noção de direito subjetivo (orientação subjetiva), quer mediante a tutela de interesses difusos ou coletivos (orientação objetiva).
De acordo com uma orientação subjetivista (direito alemão e português), o alargamento da proteção dos privados faz-se mediante o recurso a um conceito mais amplo de direito subjetivo, que tem por base os direitos fundamentais. De acordo com uma orientação objetivista (direito italiano) o alargamento da proteção dos particulares é conseguido através da criação de possibilidades de intervenção no procedimento e no processo administrativo aos titulares de interesses difusos e coletivos.
Característica da Administração conformadora da atualidade é igualmente do caráter duradouro das relações administrativas, dando sequência a uma tendência que já vinha do período anterior, mas que se contrapõe à visão clássica.
Outra característica ainda associada à Administração de infraestruturas é o esbatimento da diferenciação entre meios de atuação genéricos e individuais, em resultado da multilateralidade das decisões.
O ato isolado integra-se numa série de atos, em principio iguais, pelo que a dinâmica da constituição é, em regra, deslouvada uma vez que se refere menos à especificidade do caso concreto do que à regulação geral, ao padrão. Tal como à Administração agressiva correspondia o conceito de ato desfavorável e à Administração prestadora a noção de ato favorável, a Administração prospetiva vai ficar associada ao ato administrativo com eficácia em relação a terceiros.
A relação jurídica multilateral constitui assim a modalidade de relação jurídica, típica da Administração de infraestruturas, adequada para explicar os vínculos jurídicos que se esbatem entre todos os intervenientes das complexas relações administrativas modernas.
Outra questão suscitada pela Administração de infraestruturas é a da proliferação de decisões genéricas, nomeadamente sob a forma de disposições-programa ou de tipo finalístico que permitem à Administração uma ampla liberdade de escolha dos meios necessários para alcançar estes fins.
Problema jurídico colocado por esta forma de atuação é o da necessidade de conciliação de finalidades distintas por parte das autoridades administrativas envolvidas no processo decisório, uma vez que as decisões-plano apontam, com frequência, para vários fins, a ser prosseguidos conjuntamente, no mesmo ou em diferentes momentos.
Característico da Administração de infraestruturas é, portanto, o aparecimento de relações jurídicas multilaterais, tendo por sujeitos autoridades administrativas e todos os particulares envolvidos, os quais compreendem tanto os destinatários das atuações administrativas como aqueles que por elas são meramente afetados. O conceito de relação jurídica multilateral permite explicar todas aquelas situações de relacionamento entre os indivíduos e a Administração onde se admite a existência de direitos de terceiros.
Contrariamente a esta conceção apresentada pelo Professor Vasco Pereira da Silva, podemos apontar a doutrina do Professor Diogo Freitas do Amaral, que a contesta, apresentando a sua própria evolução histórica. Essencialmente, crítica a visão linear da passagem de um Estado social para um Estado liberal, de um Estado agressivo para um Estado providência, de um Estado pequeno para um Estado tentacular.
Para este autor, é com a administração de Estado Oriental que nascem as primeiras administrações públicas propriamente ditas, quando os imperadores constituem corpos de funcionários permanentes para cobrar impostos, executar obras públicas e assegurar a defesa contra o inimigo. Assim, não considera ter a administração pública qualquer raiz na limitação do poder para defesa ou proteção dos particulares. São criados órgãos e serviços centrais junto do imperador, são assumidas práticas fiscalizadoras da atividade dos particulares, são assumidas responsabilidades diretas pelo poder público.
Salienta depois a importância do Estado grego, mas com a condicionante da sua pequeneza, e de como as exigências feitas pela administração pública levam à decadência da cidade-Estado. Comparativamente, apresenta o caso romano, em que a cidade-Estado de Atenas cresce e dota-se de um aparelho administrativo notável. Esta adota um numeroso funcionalismo público, pago, profissionalizado e com perspetivas de carreira. A Administração Pública romana defendia fronteiras, mantinha a ordem e a tranquilidade, cobrava impostos, administrava a justiça, e executava um programa de obras públicas. Naturalmente, os funcionários eram especializados em cada uma destas cinco grandes áreas.
Segue-se, então, a administração pública do Estado medieval. Apesar do feudalismo, salientam-se órgãos centrais, como a Cúria Régia, delegados locais do Reis em todo o território e os funcionários régios cobrando impostos, fazendo obras, etc. O feudalismo provoca o aparecimento dos governos locais que chamam a si variadas funções da administração pública. Embora inicialmente matérias do âmbito social, como a educação, fossem maioritariamente asseguradas pela Igreja, rapidamente a Administração Pública as começou a regular e fiscalizar, admitindo que se tratavam de matérias do interesse público. Como antes, mantém-se a indiferenciação entre administração e justiça, sendo que alguns órgãos acumulavam funções executivas e judiciais, tal como o Rei, que administra e julga. Por outro lado, as garantias individuais contra o arbítrio dos poderes públicos são ainda deficientes. O Rei não se encontrava totalmente submetido ao Direito, tendo alta discricionariedade.
Vem, depois, o Estado moderno, caraterístico da Idade Moderna e Contemporânea. Esse divide-se, segundo o autor, em subtipos, de entre os quais o Estado corporativo, o Estado absoluto e o Estado liberal.
O Estado corporativo é caraterístico da Monarquia. Este cresce terminando com o feudalismo e a sua administração aumenta com o exército, as finanças, a justiça e a expansão colonial. O direito romano inspira decisões inspiradas no modelo imperial, contribuindo para o fortalecimento do poder real e, consequentemente, para o relevo da Administração Pública. As próprias Ordenações incluem uma série de normas de direito público atinentes à administração pública. A burocracia cresce e surge o mercantilismo, que favorece a intervenção dos poderes públicos na economia. “O Estado não era apenas autoridade, mas património”, era o Estado patrimonial.
O Estado absoluto é característico da Monarquia Absoluta. Aqui, a administração cresce e aperfeiçoa-se neste período. O absolutismo político reforça o controlo do Estado sobre a sociedade e promove uma intervenção crescente nos domínios cultural e assistencial, influenciada pelo iluminismo. A nobreza, os jesuítas e a Universidade são atacados, com vista a consolidar o absolutismo real. As garantias individuais perante o Estado não eram fortes. A própria proteção conferida pelos tribunais comuns aparecia como indesejável ao poder político.
O Estado liberal é o subtipo de Estado moderno associado ao período pós Revolução americana e francesa. Dá-se, com a separação de poderes, a separação histórica entre a administração e a justiça e a entrega das competências administrativas aos órgãos do poder executivo e a atribuição das competências jurisdicionais aos órgãos do poder judicial. Devido à legislação sobre indústria, saúde pública, combate à pobreza e caminhos-de-ferro, a administração central expande funções. Do ponto de vista económico, diminui o intervencionismo. O Estado liberal não nacionaliza empresas privadas nem cria empresas públicas, mas monta serviços públicos de caráter cultural e social e lança políticas de obras públicas. Cresce então uma burocracia para ajudar a resolver problemas económicos, sociais e culturais. É, por fim, neste período que as garantias dos particulares perante a Administração são reforçadas. O Estado liberal afirmar-se-ia como um Estado de Direito.
Por fim atingimos o Estado constitucional, característico do nosso século. Salientam três principais modalidades que a Europa conheceu no século XX: o Estado comunista, o Estado fascista e o Estado democrático. Mostra aqui discordância clara com o Professor Vasco Pereira da Silva, porque não será correto afirmar, segundo o autor, que se passou do Estado liberal ao Estado social, nem que essa evolução tenha seguido as mesmas formas em todos os países.
O Estado comunista nasce da Revolução Russa de 1917 e carateriza-se sobretudo pela centralização, rígida concentração, aumento dos ministérios no âmbito do governo central e por uma vasta rede de funcionários públicos. O Estado chama a si praticamente todas as atividades com relevo no campo económico, social, cultural, educativo, desportivo, etc., ao mesmo tempo que submete as atividades privadas ao mais apertado controlo. O princípio da legalidade é aqui o princípio da legalidade socialista, interpretada em função do objeto ideológica desta construção de sociedade. Os tribunais e os juízes não são independentes e servem para dirimir litígios entre particulares.
O Estado fascista nasce em 1919 em Itália, com Mussolini. Este adota um sistema de administração pública centralizado e concentrado ao máximo, apostando no corporativismo do Estado. A banca e a grande indústria são vítimas de escrutínio. Em todos os setores se denota o intervencionismo estatal. No plano das garantias individuais contra atos ilegais dos Poderes públicos o Estado fascista é intermédio: nem todas as garantias nem nenhumas. Se as decisões não têm caráter político, os lesados podem recorrer a tribunal administrativo especial. Mas se as decisões tiverem caráter político, a própria lei processual afasta o perigo de recorrer. O princípio da legalidade assume aqui a conotação de defesa da legalidade governamental.
Por fim cabe analisar o Estado democrático, que assenta na soberania popular. Este é descentralizador e desconcentrado e respeita as autonomias locais e regionais. No plano das garantias individuais fornece a mais ampla panóplia de instrumentos jurídicos de proteção. No âmbito das tarefas, este modelo de Estado é caraterizado pelo intervencionismo económico e pela ação cultural e social do Estado.
Nota-se assim que a doutrina não é consensual quanto à evolução histórica do Direito Administrativo e da Administração Pública, e que cabe a cada um procurar estudar toda esta histórica evolução e avaliar as suas transformações de forma pessoal e sustentada.

Bibliografia:
Pereira da Silva, Vasco, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, 1. ed., reimpressão 2016, Almedina, Coimbra, pp. 11 – 150
Freitas do Amaral, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 4ª edição, 2016, Almedina, Coimbra, pp. 45-81


Beatriz Pestana Canada, subturma 10, Turma B, 2ºano

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