quinta-feira, 29 de março de 2018

Controlo sobre o Poder Discricionário


Desde cedo que qualquer doutrina admitia que a Administração estava limitada pelo princípio da legalidade, mas dizia a doutrina clássica que em tudo aquilo que não fosse regulado pela legalidade, a Administração era livre. Este modo clássico ou liberal do entendimento da legalidade e do poder discricionário levou a que, por exemplo, em Portugal, o Professor Marcelo Caetano falasse de exceções do princípio da legalidade, e no quadro dessas exceções, incluía o poder discricionário. Hoje, este entendimento estará já ultrapassado, e entende-se, doutro modo, que o poder discricionário tem de ser integrado no âmbito da realização do Direito. E o que a Administração deve fazer sempre é concretizar perante o caso concreto a vontade do legislador, a vontade da ordem jurídica e a vontade do Direito num particular ordenamento. Assim, diz o professor Freitas do Amaral, que o poder discricionário não representa qualquer exceção à legalidade, representa apenas um modo especial de configuração da legalidade administrativa.

Mudando-se a perspetiva acerca da relação entre legalidade e poder discricionário, facilmente se compreenderá que também este é suscetível de controlo e apreciação jurisdicional. Esta apreciação jurisdicional sobre o poder discricionário será menos intensa do que a apreciação jurisdicional sobre o poder vinculado, mas todos os aspetos do poder, sejam eles discricionários ou vinculados, são sempre suscetíveis de controlo jurisdicional. Agora nem o poder discricionário é livre, nem o juiz administrativo está proibido de controlar a Administração. Ele controla de maneira diferente o poder discricionário e o poder vinculado, mas controla ambos os poderes no quadro da sua função de natureza jurisdicional Ainda assim, o Professor Freitas do Amaral ainda continua a caracterizar o poder discricionário como poder livre e se, por um lado, já adota aquela perspetiva mais aberta no quadro da formulação conceptual, por outro, ainda fala em liberdade de decidir, o que é algo que, diz-nos agora o Professor Vasco Pereira da Silva, continua a não fazer sentido uma vez que estamos a falar em vontades normativas, vontades que correspondem à realização da vontade do legislador ou à vontade do ordenamento jurídico e portanto, não são vontades livres. A Administração não tem liberdade. A Administração atua de acordo com as regras de competência e atua nos termos que são definidos no quadro das diferentes leis.

Assim, analisando de perto o controlo que é possível exercer sobre o Poder Discricionário, caberá começar por referir que na lógica tradicional o poder discricionário implicava que houvesse sempre dois vínculos: o vínculo da competência e o vínculo do desvio de poder e concluía-se assim que a Administração estava vinculada pela competência e estava vinculada pelo fim legal, e que estas eram as ilegalidades típicas do exercício do poder discricionário, e seriam estas as únicas vertentes suscetíveis de controlo jurisdicional. Porém, esta visão era uma visão limitada, que não considerada as vinculações autónomas que a ordem jurídica estabelece. E vinculações autónomas que tanto podem constar de uma lei concreta, como podem decorrer dos princípios gerais de Direito Administrativo. Isto significa que a Administração, nos dias de hoje, acaba por encontrar um conjunto de limitações muito fortes, e essas limitações alargam o âmbito de controlo do poder discricionário.

Reunimos assim os três momentos que possibilitam o controlo do poder discricionário atualmente: O controlo sobre a competência; O controlo sobre a observância do fim legal; e o controlo sobre a conformação com princípios gerais do Direito.

Quanto à competência, cabe referir que este é o vínculo mais fácil de constatar e que tem de existir sempre. Os órgãos administrativos atuam no quadro das respetivas competências e, portanto, saber se tem ou não competência para decidir é algo que decorre da lei, é um aspeto sempre vinculado. Pode haver discricionariedade no momento quanto à escolha dessa competência, o tempo é uma realidade que normalmente é discricionária, mas a competência é sempre de ordem pública e, portanto, o aspeto da competência é sempre um aspeto vinculado. No Direito português distinguem-se duas modalidades de incompetência, uma mais grave do que a outra. A incompetência que ocorre dentro da mesma pessoa coletiva ou dentro das mesmas atribuições e a incompetência em que há apropriação de poderes que pertenciam a outra pessoa coletiva. A primeira representa uma incompetência relativa, o que significa que é menos grave do que a segunda. E esta distinção determina uma outra consequência, que tem a ver com a gravidade da ilegalidade num caso e no outro. No caso da incompetência relativa, a sanção atribuída pela ordem jurídica, é a sanção da anulabilidade. E assim, o ato produz efeitos até ser anulado. No caso da apropriação de poderes de outra pessoa coletiva, não está apenas a violar-se uma regra interna de repartição de competência, e nestes casos a lei culmina para estas situações mais graves, uma sanção de nulidade. Ou seja, o ato não tem apetência para a produção de efeitos jurídicos e não os produz desde o início. Portanto, mesmo perante um ato que corresponde ao exercício do poder discricionário, é sempre possível ir ao tribunal para verificar se um órgão cumpriu as regras da competência, se há uma incompetência relativa ou se há uma incompetência absoluta. E o tribunal pode em qualquer momento verificar essa situação.

Depois há uma incompetência que decorre da preterição do fim legal. Todas as normas têm um fim. Um fim que explica a razão de ser daquele poder que é atribuído. E se é prosseguido qualquer outro fim diferente do fim legal, estamos perante uma ilegalidade e esta ilegalidade pode ser sempre controlada pelos tribunais. Também aqui é possível distinguir dois tipos de preterição de fins legais: A persecução de um outro fim de interesse público, e neste caso temos uma gravidade relativa, situação que corresponde à anulabilidade da decisão administrativa; Ou a substituição do fim legal por um fim de interesse privado. E nessa altura diz o Professor Freitas do Amaral, que temos não apenas um crime, o crime de corrupção, como do ponto de vista jurídico-administrativo uma situação tão grave que gera a nulidade das decisões que estão em causa. E é por esta razão, para efetivar o controlo sobre o fim legal, que as autoridades públicas têm o dever de fundamentar as suas decisões. E este dever de fundamentar as decisões, designadamente aquelas que são tomadas no exercício de poderes discricionários.

Portanto, temos o controlo sobre a competência, e temos o controlo sobre o fim, e a doutrina clássica ficaria por aqui. Porém, hoje devemos acrescentar a estas duas, todas as vinculações autónomas de natureza genérica que decorrem dos princípios do Direito Administrativo. Princípios estes que decorrem diretamente da Constituição, ou de leis de especial relevo, ou mesmo das regras que atribuem o poder à Administração que é o caso, designadamente, do CPA, mas há muitos outros diplomas que estabelecem princípios avulsos da Administração e que a Administração tem sempre de observar. E estes são vínculos autónomos que existem sempre, e são vínculos autónomos que permitem às vezes ir além da própria legalidade e controlar o mérito das próprias decisões, porque o alargamento dos princípios que se foi fazendo tem vindo a alargar o universo da ilegalidade das decisões administrativas e, portanto, vem criando uma maior responsabilidade para a administração e vem estabelecendo limites para toda e qualquer atuação da administração

A Constituição estabelece um conjunto de princípios (princípios constitucionais) que são imediatamente aplicáveis e vinculam diretamente a Administração. lá encontramos o princípio da igualdade, o princípio da proporcionalidade, o princípio da justiça e o princípio da boa-fé como grandes princípios constitucionais fundamentais, que obrigam imediatamente a Administração. Exemplificando: quando se diz que a Administração não pode violar o princípio da imparcialidade, isto significa que a Administração não pode nunca decidir, se tiver algum interesse na causa. O mesmo se diga da lógica da igualdade: se a administração invoca razões religiosas, políticas, ou outras que tais, na sua decisão, estamos perante uma discriminação ilegal que corresponde a uma ilegalidade na atuação do órgão. E uma atuação deste tipo não pode nunca corresponder ao exercício correto do poder discricionário. Mas mais, o princípio da proporcionalidade permite controlar o próprio modo como o poder discricionário é exercido, pois a proporcionalidade tem três dimensões: Necessidade, Adequação e Não prejuízo excessivo. Ora, cada uma desta três realidades, permite controlar integralmente as decisões administrativas, designadamente aquelas que correspondem ao exercício do poder discricionário. Se uma decisão tomada no exercício do poder discricionário, for desnecessária ou desadequada à situação que se apresenta a requerer o uso desse poder, essa decisão é ilegal, essa decisão viola a lei e como tal pode ser conhecida de um tribunal. Assim, a necessidade e a adequação passam a ser questão de legalidade e assim suscetíveis de controlo jurisdicional.

Conclui-se assim que atualmente já não poderemos referir-nos ao poder discricionário como o poder de livre decisão da administração, pois até este poder, em tempos figurado como exceção ao princípio da legalidade e insuscetível de controlo jurisdicional, pode e deve ser hoje controlado com margens relativamente apertadas.


BIBLIOGRAFIA
DO AMARAL, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3ª Edição, Reimpressão, 2017, Almedina

ALMEIDA, Mário de Aroso, Teoria Geral do Direito Administrativo, O Novo Regime do Código de Procedimento Administrativo, 3ª Edição, Almedina, 2016

DA SILVA, Vasco Dias Pereira, Em Busca do Ato Administrativo Perdido, 1ª Edição, Reimpressão, Coimbra, 2016, Almedina

Cristiano Tomás
Aluno 56999
Turma B, Subturma 10

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