sexta-feira, 30 de março de 2018

Relação jurídica multilateral/multipolar/poligonal



 A longa e traumática evolução do Direito Administrativo culminou na regulação e proteção de relações individuais entre a Administração Pública e particulares. Essas relações vieram a ser designadas como relações jurídicas administrativas que, tal como o Prof Freitas do Amaral indica, consistem em relações que se estabelecem entre sujeitos de Direito Público ou Privado, que atuem no exercícios de poderes conferidos por normas de Direito Administrativo.
Existem inúmeras classificações possíveis de relações administrativas sendo que, aquela que me proponho a analisar mais pormenorizadamente é a relação jurídica multilateral/multipolar/poligonal.
O Estado Liberal era caraterizado pela lógica de relações meramente bipolares/bilaterais, isto é, entre a Administração e os cidadãos na medida em que um particular, destinatário formal, se relacionava diretamente com a Administração. 
Porém, o período do Estado Social e o consequente alargamento das funções da administração levaram ao surgimento de uma multiplicidade de sujeitos, quer do lado da administração, quer do lado dos particulares com interesses contraditórios.
Neste contexto, ao contrário do que acontecia no período Liberal, a Administração no exercício da sua competência, passa a afetar uma multiplicidade de destinatários com interesses divergentes. Esta realidade deu origem às relações jurídicas, já não bilaterais, mas multilaterais/multipolares.
A terminologia utilizada para definir estas relações administrativas tem alguma divergência na doutrina portuguesa.
O prof. Paes Marques e a prof. Ana Gouveia Martins preferem nomear estas relações jurídicas como multipolares. Neste sentido, o Prof Paes Marques defende que esta expressão apresenta por um lado, a ideia de que os conflitos entre os sujeitos privados constituem o centro do Direito administrativo e por outro lado, que os interesses dos privados têm um carater mais delimitado, por isso, admite a existência de um círculo mais fechado de imputação de interesses.
Já o prof Vasco Pereira da Silva prefere utilizar a expressão “relação jurídica multilateral”, não concordando com as expressões “multipolar” e “poligonal”, pois defende que ambos os termos expressam a ideia de uma relação fechada entre os sujeitos, cenário que não se verifica no Direito Administrativo, tendo em conta que existe um feixe alargado de relações entre todos os sujeitos.
A meu ver, a expressão mais correta será a de relação jurídica multipolar pois, é uma expressão mais delimitadora da realidade a ser analisada.
Neste sentido, conforme explícita o Prof. Paes Marques, as relações jurídicas multipolares são relações administrativas onde se confrontam dois ou mais interesses privados e cujo a conformação do exercício cabe à Administração Publica, mediante a adoção de um ato jurídico público. É quando mais alguém, que não a administração e o particular entram na relação jurídica.
Do ponto de vista de um plano horizontal, há dois sujeitos privados cujos interesses se encontram em colisão de tal forma que um dos interesses pode não se realizar dependendo da realização de um outro.
Já de um ponto de vista vertical, há uma conciliação da relação jurídica através da adoção de um ato jurídico público.
Estamos perante uma relação jurídica que tem três ou mais vértices e portanto, uma relação jurídica triangular, encontrando-se no vértice mais elevado a Administração que exerce determinada competência e na base os interesses dos particulares contrapostos. Nesta existe o exercício de uma conduta ou ato administrativo que vai não só afetar um sujeito, como lesar ou favorecer outros sujeitos. Neste contexto, podemos utilizar como exemplo, o facto de ser conferida pela Administração Pública, uma licença (ato administrativo) a um particular (destinatário formal) para a construção de uma fábrica. Todavia, devido à poluição que provoca, efetiva a violação do direito à saúde das pessoas que habitam ao lado da construção (outros particulares, considerados destinatários indiretos de acordo com o prof. Vasco Pereira da Silva).
A relação jurídica multipolar é composta por vários elementos elencados pelo Prof Paes Marques. Nesta medida, é essencial a existência de uma relação jurídica (cuja definição enunciei anteriormente); sujeitos privados que hajam ao abrigo da sua liberdade natural e de acordo com interesses particulares; interesses conflituantes que têm uma dupla natureza, nomeadamente, de situações conflituais qualificadas de oposição reciproca e de situações qualificadas de ocorrência e de atribuição; uma Administração pública; um ato jurídico público, designadamente, o mandato de conformação, contratos administrativos e atos reais e por fim, a administratividade, isto é, o critério que nos permite determinar que esta relação seja qualificada como administrativa.
No seguimento da doutrina do Prof. Paes Marques, uma das qualificações mais relevantes reside na multipolaridade de oposição recíproca na qual, existem interesses que colidem na medida em que, o favorecimento de um dos particulares implica, de forma imediata, o prejuízo de um outro particular e na multipolaridade de concorrência de atribuição onde existe um confronto de interesses privados diversos coludentes, cuja competência para decisão da escolha seja da Administração Pública.
Indicada a estrutura da relação jurídica multipolar e os seus elementos torna-se relevante analisar como será transposta para o procedimento.
Deste modo, é necessário identificar quem tem legitimidade para iniciar o procedimento sendo que, o artg.65/1,b e 68º/1 CPA considera que são todos os interessados. Neste sentido este preceito abarca como interessados, os titulares dos interesses e de direitos legalmente protegidos e os titulares de interesses contrapostos, os titulares de interesses contrapostos, que intervém no procedimento desencadeado por outrem que têm de provar a existência de uma norma jurídica que lhe confere proteção especifica e se distingue do interesse geral da comunidade no qual ele se inclui. Não obstante podem têm também legitimidade, os cidadãos no gozo dos seus direitos civis ou políticos e os demais recenseados.
Quanto á sua legitimidade para iniciar o procedimento, os ilustres Profs Pedro Gonçalves e João Pacheco de Amorim distinguem dois tipos de interessados, nomeadamente, os interessados de 1º Grau ou os interessados obrigatórios (têm todo o tipo de garantias procedimentais) e os interessados de 2ºGrau que são meramente facultativos que apenas podem ter influência na decisão administrativa.
Esta distinção não é defendida pelo prof. Regente pois considera que, quando o particular tem legitimidade procedimental deve-lhe ser reconhecido todo o tipo de garantias a que tem direito.
É também de notar, que o artg.110 CPA refere que os titulares de interesses legalmente protegidos que possam ser prejudicados, se forem nominalmente identificadas, ou seja, identificáveis corretamente, têm de ser notificadas.
Em suma, a ideia que quis transmitir foi a de que a relação jurídica multilateral/poligonal/multipolar reside na consideração de vários aspetos, nomeadamente, de que existem relações jurídicas administrativas, que existe uma multiplicidade de sujeitos, quer do lado da Administração, quer do lado dos particulares, que existem interesses contraditórios de ambos os setores, que todos os sujeitos privados irão ser afetados pela decisão da administração e que este sujeitos podem reagir uns contra os outros para poderem ver satisfeitos os seus interesses.

Bibliografia:
- MARQUES, Francisco Paes, As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares, (contributo para a sua compreensão substantiva), Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, 2009;
- SILVA, Vasco Pereira da, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 1998;

- AMARAL, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo Volume II (3ª Edição),  Edições Almedina, maio de 2016

Maria Carolina Borges

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