A
Ilegalidade do ato administrativo
Ana
Carolina Godinho Neves, aluna nº 56901, da FDUL
Um ato administrativo é,
nas palavras do Professor Freitas do
Amaral, “um ato jurídico unilateral praticado, no exercício do poder
administrativo, por um órgão da Administração ou por outra entidade pública ou
privada para tal habilitada por lei, e que traduz a decisão de um caso
considerado pela Administração, visando produzir efeitos jurídicos numa
situação individual e concreta.”
Por
vezes, acontece que o ato administrativo é inválido e a invalidade do ato
administrativo é, segundo o Professor
João Caupers, “o juízo de desvalor emitido sobre ele em resultado da sua
desconformidade com a ordem jurídica.”. Ora, existem várias fontes de
invalidade do ato administrativo, porém, a que neste trabalho releva é a
ilegalidade do ato administrativo. Sendo assim, importa dizer que um ato ilegal
da administração é, tal como o nome indica, um ato contrário à lei, esta
entendida num sentido amplo.
A
ilegalidade do ato administrativo pode ter várias formas, que são designadas por
vícios do ato administrativo.
A
doutrina tradicional divide esses vícios em cinco categorias. Como vícios
orgânicos, ou seja, relativos aos sujeitos do ato administrativo temos a usurpação de poderes e a incompetência, como vícios formais temos
o vício de forma e como vícios
materiais, isto é, relativos ao objeto, ao conteúdo ou aos motivos do ato o desvio de poder e a violação de lei.
O
Professor Freitas do Amaral afirma
que ao falarmos de violação de lei,
uma das categorias acima apresentadas, temos de entender isso num sentido
restrito, pois num sentido amplo todos aqueles vícios são violações de lei.
Por
sua vez, o Professor João Caupers
aconselha-nos a ter cuidado para não confundirmos vícios do ato administrativo
com vícios da vontade: estes últimos “podem gerar a invalidade do ato
administrativo, na medida em que a formação da vontade dos órgãos da
Administração Pública deve ser livre e esclarecida. Uma vontade administrativa
deformada pelo erro, pelo dolo, por coação ou por incapacidade acidental não é em
si uma ilegalidade, mas deve, em princípio, constituir causa de invalidade
daquele.”
Começando
pela usurpação de poderes, há que dizer que esta consiste na prática de um ato
por parte de um órgão da Administração Pública, doravante AP, ato este que
estava incluído nas atribuições do poder legislativo ou do poder judicial e
excluído do poder executivo, acabando por se tornar numa violação ao Princípio
da Separação de Poderes.
O Professor Freitas do Amaral distingue três modalidades de
usurpação de poderes: a usurpação do poder legislativo; a usurpação do poder
moderador; e a usurpação do poder judicial. Na primeira situação “o órgão
administrativo pratica um ato que pertence às atribuições do poder
legislativo”, na segunda “pratica um ato que pertence às atribuições do poder
moderador (presidencial)” e na terceira “pratica um ato que pertence às
atribuições do poder judicial.”
Neste contexto, o Professor Mário Aroso de Almeida afirma
que a usurpação de poderes “Configurando uma violação do próprio princípio da
separação de poderes, corresponde à mais grave das situações de inobservância
das regras que definem o quadro de atribuições e competências administrativas
e, por isso, sempre se entendeu que gera a nulidade do ato administrativo, como
expressamente estabelece o art.161º/2-a) CPA.”
Passando agora ao outro
vício do ato administrativo em matéria de ilegalidade orgânica, a
incompetência, diz-nos o Professor João
Caupers que esta “consubstancia-se na prática por um órgão de uma pessoa
coletiva pública de um ato incluído nas atribuições de outra pessoa coletiva
pública (incompetência absoluta) ou na competência de outro órgão da mesma
pessoa coletiva (incompetência relativa).”
É crucial distinguir de
forma clara este vício do anterior: no anterior, o Poder Executivo tem de
invadir a esfera de outro poder do Estado e neste, o órgão que praticou o ato tem
de invadir a esfera de outra autoridade administrativa, mas sem sair do âmbito
do poder administrativo.
De acordo com o Professor Freitas do Amaral, segundo um
primeiro critério, a incompetência dividir-se-ia, como anteriormente referido,
em absoluta e em relativa, mas de acordo com um segundo critério, dividir-se-ia
a incompetência em razão da matéria (“quando um órgão administrativo invade os
poderes conferidos a outro órgão administrativo em função da natureza dos
assuntos”), em razão da hierarquia (“quando se invadem os poderes conferidos a
outro órgão em função do grau hierárquico, nomeadamente quando o subalterno
invade a competência do superior, ou quando o superior invade a competência do
subalterno”), em razão do lugar (“quando um órgão administrativo invade os
poderes conferidos a outro órgão em função do território”) e em razão do tempo
(“quando um órgão administrativo exerce os seus poderes legais em relação ao
passado ou em relação ao futuro [salvo se a lei, excecionalmente, o
permitir]”).
Seguindo o primeiro
critério, importa saber que aos atos de incompetência absoluta o CPA, no seu
art.161º/2-b) lhes reserva a sanção de nulidade. Já no que toca aos atos de
incompetência relativa, a sanção será a regra geral da anulabilidade,
art.163º/1 CPA.
O Professor Mário Aroso de Almeida, que inclui a incompetência
territorial na incompetência relativa, acrescenta que “Embora a doutrina por
vezes sustente que às situações de incompetência territorial pode corresponder
a sanção da nulidade, na realidade, parece que isso apenas se deve admitir no
caso de ocorrer verdadeira falta de atribuições, como sucederá se o problema
envolver, por exemplo, autarquias vizinhas.”
Quanto ao vício de forma,
a doutrina tradicional diz que esse consiste na carência de forma legal ou na
preterição de formalidades essenciais.
Há que saber que as
deliberações dos órgãos colegiais são praticadas de forma oral, art.150º/2 CPA,
que os atos administrativos de órgãos singulares devem ser expressos e por
escrito, art.150º/1 CPA e que sem estar escrito esse ato não existe. Diz-nos o Professor Mário Aroso de Almeida sobre
isso que “ se, no entanto, um comando for oralmente expresso pelo seu autor,
deverá entender-se, salvo disposição especial em contrário, que estamos perante
um ato nulo, por carência absoluta da forma legal, art.161º/2-g) CPA.”, por
fim, a forma escrita é solene, isto é, o ato tem que revestir a forma exigida,
por exemplo, a lei pode exigir que em vez de o ato assumir a simples forma de
um despacho tem de assumir a forma de portaria ou de decreto e a inobservância
disso torna o ato anulável, art.161º/2-g) CPA.
Neste contexto, releva
ainda conhecer que o art.152º CPA exige que a forma da generalidade dos atos
administrativos inclua fundamentação. A inobservância do disposto nos arts.152º
a 154º CPA gera a anulabilidade do ato administrativo.
Ocupemo-nos agora com os
vícios materiais e comecemos pela violação de lei, que é, nas palavras do Professor Freitas do Amaral “o vício que
consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objeto do ato e as normas
jurídicas que lhes são ocupadas.”. Segundo o mesmo autor, este vício produz-se
normalmente quando no exercício de poderes vinculados, a Administração decide
coisa diferente do que a lei estabelece ou quando não decide nada quando a lei
exige uma decisão. Contudo, é hoje em dia defendido que um vício de violação de
lei no exercício de poderes discricionários também pode ocorrer, isto quando
são “infringidos os princípios gerais que limitam ou condicionam, de forma
genérica, a discricionaridade administrativa, designadamente os princípios
constitucionais: o princípio da imparcialidade, o princípio da igualdade, o
princípio da justiça, o princípio da proporcionalidade, o princípio da boa fé,
etc.” Neste contexto, o Professor faz uma enumeração das várias modalidades que
o vício da violação de lei pode tomar: a prática de um ato administrativo sem
que haja para esse uma base legal; AP comete um erro de direito na
interpretação, integração ou aplicação das normas jurídicas; incerteza,
ilegalidade ou impossibilidade do conteúdo do ato administrativo; incerteza,
ilegalidade ou impossibilidade do objeto do ato administrativo; a inexistência
ou ilegalidade dos pressupostos relativos ao conteúdo ou ao objeto do ato
administrativo; a ilegalidade dos elementos acessórios incluídos pela AP no
conteúdo do ato; qualquer outra ilegalidade do ato administrativo que não caiba
em mais nenhum vício.
Quanto a este vício, o Professor Mário Aroso de Almeida define
o objeto do ato administrativo como “o termo passivo sobre o qual se projetam
os efeitos do ato”, mas diz que também se pode atribuir à noção de objeto um
sentido mais amplo e assim seria “o próprio conteúdo do ato administrativo”,
aceção que consta do art.161º/2-c) CPA. Esse objeto tem de ser possível, certo,
inteligível e determinado ou determinável, de acordo com o artigo há pouco
referido, sendo que um ato administrativo cujo objeto não tiver essas
características é nulo.
Por fim, resta-nos o
desvio de poder que é, nas palavras do Professor
Freitas do Amaral, o “vício que consiste no exercício de um poder
discricionário por um motivo principalmente determinante que não condiga com o
fim que a lei visou ao conferir tal poder.” Este autor, diz que o desvio de
poder comporta duas modalidades, nomeadamente o desvio de poder para fins de
interesse público (“quando o órgão administrativo visa alcançar um fim de
interesse público, embora diverso daquele que a lei impõe”) e o desvio de poder
para fins de interesse privado (“quando um órgão administrativo não prossegue
um fim de interesse público, mas um fim de interesse privado”). O Professor Mário Aroso de Almeida
transmite a ideia de que só se atribui relevância ao vício dos motivos se este
afetar o motivo determinante na decisão, ou seja, o ato não é inválido se se
demonstrar que foi influenciado por motivos pelos quais não o devia ter sido,
mas sim inválido se se demonstrar que esses motivos foram determinantes para a
decisão tomada, o que dificulta a demonstração da existência deste vício. Contudo,
a doutrina defendia que todos os atos com desvio de poder para fins de
interesse privado deviam ser nulos, solução atualmente consagrada no
art.161º/2-e) CPA.
Para terminar, interessa
apenas fazer saber que um ato administrativo pode ser ilegal por ter um único
vício, ou por ter dois ou mais, isto é, os vícios são cumuláveis. Pode até
acontecer que um ato seja ilegal por ter vários vícios do mesmo tipo.
Bibliografia:
-
Amaral,
Diogo Freitas do (2011), Curso de
Direito Administrativo, II, 2.ª edição, Almedina, Coimbra;
- Caupers, João (2013), Introdução
ao Direito Administrativo, 10.ª edição, Âncora Editora, Lisboa;
- Almeida, Mário Aroso de (2016), Teoria Geral do Direito Administrativo – O Novo Regime do Código do
Procedimento Administrativo, 3.ª edição, Almedina, Coimbra.
Sem comentários:
Enviar um comentário