sábado, 21 de abril de 2018

Audiência prévia: direito fundamental?


Para começar, é importante fazer uma breve menção à estrutura do procedimento administrativo. Assim, segundo a divisão do Professor Doutor Mário Aroso de Almeida, teremos:
1. Iniciativa;
2.  Fase preparatória (procede-se à instrução, que tem por objeto a recolha dos elementos necessários à tomada da decisão);
3. Fase constitutiva/de resolução do procedimento (onde se toma a decisão final);
4. Fase complementar/integrativa (tem por objeto o cumprimento das formalidades necessárias para que a decisão chegue aos destinatários e se torne capaz de produzir os efeitos a que se dirige).

Em momento imediatamente anterior ao da tomada da decisão procede-se, por norma, à audiência dos interessados (ou audiência prévia). Esta deve ser separada da estrutura do procedimento pois desempenha uma função autónoma.

Antes da revisão do Código de Procedimento Administrativo (CPA), a audiência prévia só era devida quando houvesse instrução, atendendo à redação do antigo art. 100. Ora, isto era claramente errado, visto que tem de ser sempre assegurado ao interessado a possibilidade de se pronunciar sobre a provável decisão a tomar. Por esse motivo, o regime do art. 121º do atual CPA vem dizer que a audiência prévia tem lugar antes da tomada de decisão final, quer tenha ou não havido instrução.

Ademais, o art. 268/3 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e o art. 12º do CPA determinam que os cidadãos têm o direito de participar e de serem ouvidos na formação das decisões em que estejam em causa os seus interesses, cabendo à Administração Pública assegurar essa participação, através da audiência dos interessados. A audiência dos interessados caracteriza-se pela chamada dos interessados no procedimento a conhecerem a totalidade da atuação da Administração Pública, de modo a evitar uma decisão surpresa. Portanto, esta fase deve assegurar a plenitude da produção argumentativa por parte do interessado que deverá ter conhecimento de todos os dados que contribuíram para o projeto de decisão.

O direito à audiência prévia é considerado não apenas uma exigência do princípio da justiça, mas também uma expressão do princípio da eficácia o qual assegura um melhor conhecimento dos factos e contribui para melhorar a decisão administrativa garantindo que a mesma venha a ser mais acertada e congruente.

A partir do art. 124º do CPA sabemos que pode haver dispensa de audiência dos interessados, numa das circunstâncias mencionadas pelo artigo. Contudo, coloca-se a questão de saber qual a consequência caso não haja motivo de dispensa mas a audiência não se realize. Nestes casos, há um vício de forma que gera, obviamente, um desvalor jurídico. Mas qual? É neste ponto que existe divergência doutrinária e jurisprudencial.

Por um lado, o Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral e a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo defendem que o direito de audiência prévia não deve ser entendido como um direito fundamental, mas sim como uma fase que tem como objetivo melhorar a prossecução do interesse público. O Doutor Freitas do Amaral apresenta dois argumentos para defender a sua tese: em primeiro lugar, considera que os direitos fundamentais são aqueles que são inerentes à dignidade da pessoa humana, pelo que não se inclui aqui o direito de audiência; em segundo lugar, diz que a jurisprudência portuguesa considera que a falta de arguido no processo disciplinar gera apenas anulabilidade, pelo que não faz sentido que no caso de falta de audiência prévia, que, a seu ver, não é tao grave como a falta de arguido, se adote uma sanção mais grave: a nulidade.

Por outro lado, se se considerar, como o fazem os Professores Doutores Vasco Pereira da Silva e Sérvulo Correia, que o direito de audiência prévia é um direito análogo a um direito fundamental, então o desvalor jurídico que se deve aplicar à inexistência de audiência prévia quando não haja dispensa da mesma é a nulidade. Isto decorre do art. 161/2, d) do CPA. Para defender a sua posição, o Professor Doutor Vasco Pereira da Silva alega que a CRP reconhece aos indivíduos direitos subjetivos perante a Administração, tratando-os como sujeitos nas relações administrativas, ‘’(…) 
Daí que, segundo o princípio da não tipicidade, ou da cláusula aberta, em matéria de direitos fundamentais (contido no artigo 16º da Constituição), o reconhecimento de posições jurídico-constitucionais de vantagem do cidadão perante a Administração -  como é o caso do artigo 267º/4 da Constituição, que garante a todos os cidadãos a «participação (…) na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito» – é de qualificar como um «direito, liberdade e garantia de natureza análoga»’’. Discordando do Professor Doutor Freitas do Amaral, diz o Professor Doutor Vasco Pereira da Silva que, nos dias de hoje, a dignidade da pessoa humana tem de ser assegurada pelo Estado-administração, através, nomeadamente, do reconhecimento do indivíduo como sujeito de relações administrativas. Ou seja, os direitos de procedimento surgem como um desenvolvimento do princípio da dignidade humana num Estado Pós-social de Direito. Aplicando os pressupostos do raciocínio do Professor Doutor Freitas do Amaral, o Professor Doutor Vasco Pereira da Silva concorda que não se deve aplicar a sanção da nulidade para a não audiência do interessado num qualquer procedimento e a sanção da anulabilidade no caso de se tratar de um processo disciplinar, pelo que conclui que em ambos os casos se deve aplicar o desvalor da nulidade.

Cumpre ainda mencionar a posição do Professor Doutor Mário Aroso de Almeida, que admite que o direito de audiência possa ser considerado como um direito fundamental mas apenas em procedimentos sancionatórios. Diz este Professor que ‘’Não se contesta que direitos como o de audiência e defesa em procedimentos sancionatórios são direitos fundamentais formais ou procedimentais. (…) O que não se afigura necessário é ver no genérico do direito de audiência dos interessados, tal como ele resulta do CPA, um direito fundamental formal ou procedimental’’.

Face ao exposto, e tendo apreciado cuidadosamente as teses mencionadas, é do meu entendimento, com o devido respeito por quem tenha opinião diferente, que se deve considerar o direito de audiência prévia como um direito fundamental, visto que a posição dos indivíduos carece, cada vez mais, de mais proteção perante a Administração. Como já foi dito, a audiência tem de basear-se em informação que permita ao interessado reconhecer não só o objeto do procedimento, mas também saber qual o sentido provável da decisão da Administração, daí que seja tão importante esta fase. Assim, caso não haja motivo para a dispensa de audiência prévia e esta não se realizar, o desvalor jurídico deve ser o da nulidade, aplicando-se o regime previsto no art. 162º do CPA.

Bibliografia
PEREIRA DA SILVA, Vasco, Em busca do ato administrativo perdido, Almedina, Coimbra, 1996, págs. 424-432.
AROSO DE ALMEIDA, Mário, Teoria geral do Direito Administrativo: o novo regime do Código do Procedimento Administrativo, págs. 114-124


Maria Manuel Pedro, nº57136, subturma 10, turma B

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