sábado, 19 de maio de 2018

Ato administrativo: evolução do conceito e conceções amplas e restritas


O ato administrativo é uma das principais formas da atividade da Administração Pública e a sua forma de atuação mais tradicional. Constitui uma expressão do exercício de um poder público de autoridade (ius imperii). Ao longo da história, o ato administrativo conheceu vários modelos, consoante a época em que se inseria, que são importantes conhecer. Como afirma o Professor Doutor Mário Aroso de Almeida ‘’De país para país, e dentro de cada país, de Autor para Autor, tendem, na verdade, a variar os entendimentos sobre o conceito de ato administrativo e as respectivas fronteiras - especialmente num contexto caracterizado pela emergência de novas formas de atuação da Administração Pública, como é aquele que as sociedades europeias têm vivido em tempos mais recentes.’’. Assim, verificamos que a noção de ato administrativo é altamente mutável, adaptando-se às circunstâncias em que se insere. Vejamos, então, o que caracteriza a definição de ato administrativo em cada momento.

Ao longo do século XIX procurou-se afastar a atuação da Administração de tudo o que dissesse respeito à vida privada dos cidadãos. Tal era uma reação ao então recente Estado de Polícia, caracterizado pela centralização de todos os poderes na pessoa do rei – Absolutismo. Consequentemente, na Época do Estado Liberal, ainda marcado pelas ideias absolutistas que vão perdurar longos anos, o modelo do ato administrativo era autoritário e desfavorável à liberdade dos cidadãos. Isto demonstrava claramente a supremacia da Administração Pública em relação aos cidadãos, pois ela detinha amplos poderes de regulamentação e fiscalização das atividades do povo. Existem três conceções importantes acerca do ato administrativo desta época, feitas por Otto Mayer, Maurice Hauriou e Marcello Caetano. Em primeiro lugar, Otto Mayer, conhecido positivista jurídico alemão, partia da similitude entre Administração e Justiça como funções executivas, concebendo o ato administrativo como um ato que definia o direito aplicável aos particulares. Comparava os atos administrativos às sentenças, porque considerava que os atos definiam o direito de forma coativa. Por outro lado, Maurice Hauriou, positivista sociológico francês, comparava o ato administrativo aos negócios jurídicos. Segundo a sua posição, o que caracterizava os atos administrativos eram os poderes exorbitantes da Administração. Estes privilégios exorbitantes correspondiam ao privilégio decisório (era a Administração Pública que decidia e definia o direito através deste privilégio) e o privilégio executório (correspondia à capacidade coativa). Esta teoria acaba por ser uma outra forma de expressar a posição do alemão Otto Mayer. Por último, o Professor Doutor Marcello Caetano propôs um conceito de ato administrativo definitivo e executório, que definia como ‘’a conduta voluntária de um órgão da Administração no exercício de um poder público que, para a prossecução de interesses a seu cargo, pondo termo a um processo gracioso ou dando resolução final a uma petição, defina, com força obrigatória e coerciva, situações jurídicas num caso concreto’’. Tendo por base esta definição e tripla dimensão, o Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral define aquilo que se chama tripla definitividade. Teremos, deste modo, a definitividade material (porque definia direito feito no caso concreto), definitividade vertical (tomado pela autoridade suprema da Administração) e definitividade horizontal (o mais importante é a decisão final, o resultado do procedimento, enquanto última vontade da Administração).

O Professor Doutor Vasco Pereira da Silva apresenta várias críticas a estas conceções clássicas de ato administrativo. Primeiramente, afirma que não é a Administração que tem de definir o Direito, mas sim o juiz. A Administração utiliza o Direito para satisfazer as necessidades dos cidadãos, as necessidades coletivas. Então, a ideia de que o ato é a definição do Direito não procede, não fazendo sentido falar-se em definitividade material. Acrescenta também que cada vez mais nos nossos dias há desconcentração dos polos decisórios da Administração, o que leva a que qualquer órgão com competência possa praticar atos administrativos, pelo que não é unicamente a Administração Pública que o pode fazer, por isso não há que falar em definitividade vertical. No que diz respeito à definitividade horizontal, este Professor defende que os procedimentos são uma realidade cada vez mais complexa e, por esse motivo, têm importância todas as decisões tomadas no âmbito do procedimento e não apenas a decisão final. Ora, isto é fácil de compreender, uma vez que todas as decisões tomadas pela Administração durante um procedimento vão reflectir-se na decisão final. Ademais, diz que a característica da executoriedade não está presente na maior parte dos atos administrativos de hoje em dia e por isso não é razoável dizer-se que a execução coativa caracteriza os atos administrativos.

Posteriormente, com a transição para o Estado Social, caracterizado pela crescente intervenção da Administração na sociedade e na economia (daí se designar a Administração como ‘’prestadora’’), a lógica do ato administrativo era a de atribuir vantagens aos particulares. Houve a necessidade de criar garantias que tutelassem a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos, numa ótica de proximidade entre estes e o Estado. Ou seja, deixou de se ter atos administrativos autoritários para se ter atos administrativos favoráveis, nos quais não cabia a ideia de ato executório, enquanto ato que punha em causa a defesa dos direitos dos particulares.

Já no Estado Pós-Social, em virtude da permanente complexificação da atividade administrativa, surgem os atos administrativos multilaterais. A Administração Pública pratica atos que têm repercussões numa multiplicidade de cidadãos, daí que se diga que estes atos têm eficácia em relação a terceiros.  

Segundo o Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, estes modelos de atos administrativos coexistem no Direito Administrativo português nos dias de hoje. Não podem, por isso, ser considerados individualmente: é preciso retirar de cada um deles elementos importantes para que se alcance um conceito amplo de ato administrativo, que abarque atos autoritários, atos prestadores e atos multilaterais.  Segundo a sua opinião, o art. 148º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) apresenta uma noção ampla e aberta do conceito de ato administrativo, mas nem todos os autores assim o consideram. Afirma este Professor que o elemento chave do artigo em apreço é a produção de efeitos jurídicos.

Importa discutir dois pontos. Em primeiro lugar, o Professor Doutor Freitas do Amaral, para defender a noção restritiva de ato administrativo (contrariando a sua posição anterior que defendia uma noção ampla de ato administrativo), argumenta que o ato administrativo é uma decisão. Tem por base a letra da lei do art. 148º CPA, em especial o termo ‘’decisões’’, e entende que este termo implica a comparação do ato administrativo às decisões judiciais, daí os atos serem definidores de direito. O Professor Doutor Vasco Pereira da Silva contra argumenta dizendo que o termo ‘’decisões’’ é amplo e neutro, não se reconduzindo apenas a decisões judiciais. No quadro da ‘’Teoria da Decisão’’, a lógica moderna de consideração do fenómeno decisório é de considerar que a decisão é uma realidade comum a todas as ciências sociais e por esse motivo não faz sentido reconduzir o termo ‘’decisões’’ apenas às decisões judiciais. Em segundo lugar, o segundo ponto que é importante mencionar relaciona-se com o uso da expressão ‘’externos’’ prevista no art. 148º CPA. O Professor Doutor Vasco Pereira da Silva considera que a introdução desta expressão não altera muito a noção de ato administrativo. Preferia, no entanto, que a expressão não estivesse presente no artigo, mas não deixa de sublinhar a ideia de que quando se fala na produção de efeitos jurídicos, esses são obviamente externos, por dizerem respeito a uma realidade que produz efeitos para fora. Seguindo a corrente de pensamento do jurista italiano Antonio Cassesse, aquele Professor defende que hoje em dia é inútil fazer uma distinção entre atos externos e internos porque estes últimos irão transformar-se em atos externos, pelo simples facto de produzirem efeitos jurídicos e terem eficácia externa em relação a terceiros.

Em suma, conseguimos compreender que, apesar das diferentes aceções de ato administrativo que existiram ao longo da história, este foi sempre encarado como um exercício da função administrativa, ainda que a atuação do Estado nem sempre tenha sido favorável aos cidadãos. É importante, seguindo a posição do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, que o conceito de ato administrativo se vá expandido e o primeiro passo para tal já foi dado com a consagração, no art. 148º CPA, de um conceito amplo de ato administrativo.

Bibliografia
ALMEIDA, Mário Aroso de, Teoria Geral do Direito Administrativo – o novo regime do Código de Procedimento Administrativo, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2016
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2016
PEREIRA DA SILVA, Vasco, Em busca do ato administrativo perdido, Almedina, Coimbra, 1996


Maria Manuel Pedro, nº57136

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