A privatização da Administração Pública é
entendida pelo Professor Paulo Otero como “o exercício por entidades
privadas de funções de natureza administrativa ou, segundo outra perspetiva,
como a transferência para particulares do exercício de poderes soberanos
normalmente integrantes da esfera de autoridades públicas”. Contrário ao que se
possa pensar, este fenómeno de privatização não se trata de um fenómeno recente,
mas sim de uma realidade muito anterior ao século XX.
Na sua intervenção no IV Colóquio
Luso-Espanhol de Direito Administrativo, o Professor Paulo Otero remontou
o fenómeno de privatização ao século XV, ou seja, à época dos Descobrimentos. Naquela
altura foram criadas capitanias donatárias, conferindo-se a um particular (um
capitão donatário) extensos poderes de soberania, de caráter administrativo e
jurisdicional, sobre o território e a respetiva população de modo a fazer face
à colonização de novos territórios resultantes da expansão.
Apesar de anterior ao século XX,
foi neste século que a privatização da Administração Pública se verificou em
maior escala. A transição do Estado Liberal para o Estado Social de Direito,
portanto, de uma administração mínima e abstencionista para uma administração intervencionista,
reguladora e prestadora de serviços à sociedade, alargou em grande escala as
funções da Administração Pública. O Estado Social de Direito deixou então a
abordagem “laisser faire” do Liberalismo para se propor a “faire elle-même”
(fazer ele mesmo), como escreveu a Professora Maria João Estorninho.
As alterações que se verificaram
provocaram não só um aumento das funções que o Estado desempenhava até então, mas
também o “surgimento de novas tarefas nos domínios económicos e sociais”, como
escreveu o Professor Vasco Pereira da Silva, que resultou em
dificuldades de financiamento e de realização de todas elas. Face às
dificuldades, o Estado teve a necessidade de transferir para entidades privadas
o exercício de funções de natureza administrativa de modo a estas prosseguirem
interesses públicos e, dessa forma, tornar a atuação do Estado mais eficiente.
Falamos então do fenómeno de privatização da Administração Pública.
Numa primeira aceção,
“privatizar” significa tornar privado algo que antes o não era, isto é,
privatizar envolve remeter para o Direito Privado, transferir para entidades
privadas ou confiar ao setor privado matérias ou bens até então objeto de
intervenção pública.
O exercício privado de funções
públicas, para o Professor Paulo Otero, tem sido configurado atendendo a
duas perspetivas: primeiro, de acordo com uma orientação objetivista segundo a
qual se deve ter em consideração o tipo de atividade material desenvolvida pelo
particular, procurando determinar a sua natureza intrinsecamente pública ou
privada e, pelo contrário, uma orientação estatuária que atribui relevância à
posição jurídica do sujeito, visando saber os poderes de autoridade que são
conferidos aos particulares e determinar, deste modo, se estes exercem ou não
funções públicas.
Tendo em conta a definição de
interesse público expressa na satisfação de determinadas necessidades coletivas
e a qualidade do sujeito que as satisfaz, verifica-se que nem todas as
necessidades coletivas públicas são objeto de prossecução direta por entidades
públicas. Deste modo, o exercício por parte de um privado de funções públicas é
suscetível de envolver dois efeitos: a transferência, total ou parcial, da
prossecução de um determinado interesse público e, paralelamente, a atribuição
de poderes de autoridade a entidades privadas sobre outros sujeitos de direito.
Apesar da transferência para entidades privadas do exercício de funções
públicas, o Estado nunca se desvincula ou exonera da sua responsabilidade
institucional como garante, regulador e polícia das realidades jurídicas
privatizadas.
O Professor Paulo Otero
enumerou vários sentidos diferentes que o conceito jurídico de “privatização da
Administração Pública” se mostra passível de comportar, nomeadamente: a
privatização da regulação administrativa da sociedade, a privatização do Direito
regulador da Administração, a privatização das formas organizativas da Administração,
a privatização da gestão ou exploração de tarefas administrativas, a
privatização do acesso a uma atividade económica, a privatização do capital
social de empresas públicas, a privatização dos critérios substantivos de decisão
administrativa e, por último, a privatização dos mecanismos de controlo da
Administração. Abordarei sucintamente cada uma delas.
> A privatização da regulação administrativa da sociedade
> A privatização da regulação administrativa da sociedade
Numa manifestação do princípio da
subsidiariedade do Estado, a privatização pode consubstanciar um processo mediante
o qual uma entidade pública reduz ou suprime a sua intervenção reguladora,
procedendo a uma devolução ou transferência para determinados sujeitos ou
instituições privadas do poder de criação de normas jurídicas disciplinadoras
das suas respetivas atividades.
> A privatização do Direito regulador da Administração
A privatização da Administração
Pública poderá também ser vista como um fenómeno referente à natureza do
Direito aplicável pelas entidades públicas, traduzindo a subordinação da sua
atividade ou das suas respetivas relações internas ao Direito privado.
Relativamente a este caso, há quem fale numa “fuga para o Direito Privado” da
Administração Pública.
> A privatização das formas organizativas da Administração
Têm vindo a ser criadas, em
número cada vez maior, pessoas coletivas de Direito privado, sendo estas
criadas por entidades de Direito público e instrumentalizadas à prossecução de
fins primariamente de natureza pública. Neste caso, nada se transfere para fora
do setor público, tudo se resume a uma utilização de formas organizativas
típicas do Direito privado por parte da Administração Pública.
> A privatização da gestão ou exploração de tarefas administrativas
Neste sentido de “privatização”, transfere-se
para pessoas privadas (singulares ou coletivas) a gestão ou exploração de
tarefas administrativas até então prosseguidas por entidades públicas.
> A privatização do acesso a uma atividade económica
Consiste na abertura à iniciativa
económica privada de um ou mais setores da economia que até então eram apenas
explorados por entidades do setor público.
> A privatização do capital social de empresas públicas
Neste sentido, está em causa a
abertura a entidades privadas de capital social de sociedades cuja titularidade
do capital pertence a entidades privadas.
> A privatização dos critérios substantivos de decisão administrativa
A privatização da Administração
Pública pode recair sobre os critérios materiais subjacentes à atuação
administrativa. O decisor administrativo passa a ter uma conduta regida por
instrumentos de mercado, agindo de acordo com uma lógica própria dos agentes
económicos privados e fora das empresas públicas.
> A privatização do controlo da Administração
Este sentido de privatização é
colocado numa dupla perspetiva: a privatização das entidades encarregues do
controlo e a privatização dos mecanismos de controlo. A primeira refere-se à
utilização de entidades do setor privado para que estas efetuem o controlo
financeiro de entidades públicas, enquanto a segunda diz respeito à utilização
de novos critérios fiscalizadores, diferentes dos tradicionalmente utilizados
pelas entidades públicas, verificando-se assim uma aproximação aos mecanismos
de controlo da gestão das empresas do setor privado.
O professor José Carlos Vieira de
Andrade escreveu que, devido à frequente utilização de entidades e de meios de
Direito privado pela Administração Pública, podemos hoje falar numa “aplicação
“miscigenada” do Direito público e do Direito privado”.
Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo I, 4.ª edição, Almedina,
Coimbra, 2015
OTERO, Paulo, Manual
de Direito Administrativo I, Almedina, Coimbra, 2015
OTERO, Paulo, Direito
do Procedimento Administrativo I, Almedina, 2016
Intervenção do professor Paulo Otero no IV Colóquio Luso-Espanhol
de Direito Administrativo – Os Caminhos
da Privatização da Administração Pública, Coimbra Editora, 2001
ESTORNINHO, Maria João, A
Fuga para o Direito Privado”, Almedina, Coimbra, 2009
SILVA, Vasco Pereira da, Em
Busca do Ato Administrativo Perdido, Almedina, Coimbra, 1996
ANDRADE, José Carlos Vieira de, Lições de Direito Administrativo, 1º edição, Universidade de
Coimbra, 2010
Andreia Agostinho, nº 56788
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