Hierarquia
em sentido jurídico vs em “sentido impróprio”
O
Professor Freitas do Amaral realiza uma distinção a título explicativo entre a
hierarquia em sentido jurídico, a que está em causa na administração, e outros
conceitos denominados de hierarquia mas que não correspondem aos critérios de
uma hierarquia jurídica.
Fala-se
em hierarquia dos tribunais para
significar que a organização judiciária se encontra estruturada por graus. Todavia,
não temos aqui um vínculo característico da hierarquia em sentido jurídico, que
é o vínculo de subordinação. Não é função do Supremo Tribunal de Justiça dar
ordens aos Tribunais da Relação, nem é função destes dar ordens aos Tribunais
de 1ª Instância.
Fala-se
também em hierarquia de postos, i.e.,
uma forma de organização de carreiras em que os funcionários “progridem”
passando de postos menos relevantes para outros que o sejam mais. Mas não
existe aqui hierarquia em sentido jurídico. O Professor Freitas do Amaral
exemplifica este caso dizendo que entre um 1º oficial e um 2º oficial não há
superiores. São todos subalternos de um chefe de secção.
Por fim, fala
ainda de uma hierarquia política,
como aquela para as relações em que não se pode negar certas formas de
supremacia e subordinação, como entre o Primeiro-Ministro e os restantes
Ministros. Mas, novamente, não há aqui uma hierarquia em sentido jurídico,
porque não há entre estes órgãos poderes de direção é deveres de obediência.
O
que é a hierarquia administrativa?
Para
o Professor Marcello Caetano, a hierarquia é “o ordenamento em unidades
que compreendem subunidades de um ou mais graus e podem agrupar-se em grandes
unidades, escalonando-se os poderes dos respetivos chefes de modo a assegurar a
harmonia de cada conjunto. (…) A esta hierarquia corresponde uma hierarquia das
respetivas chefias. Há em cada departamento um chefe superior, coadjuvado por
chefes subalternos de vários grupos pelos quais estão repartidas tarefas e
responsabilidades proporcionalmente ao escalão que se acham colocados”.
Para
o Professor Cunha Valente, a hierarquia é “o conjunto de órgãos
administrativos de competências diferenciadas mas com atribuições comuns,
ligados por um vínculo de subordinação que se revela no agente superior pelo
poder de direção e no subalterno pelo dever de obediência”.
Para
o Professor Paulo Otero, é essencial determinar que:
ü A hierarquia é um fenómeno jurídico complexo, não
sendo definido integralmente por um único elemento;
ü A estrutura interorgânica da competência não permite
recolher qualquer elemento integrável na noção de hierarquia administrativa;
ü O poder de direção é o elemento essencial da
hierarquia, mas não é o seu único elemento. I.e., não há hierarquia sem poder
de direção, mas não pode existir poder de direção sem hierarquia
administrativa;
ü Esta comporta uma supremacia da vontade do superior
perante o subalterno;
ü Esta é um modelo de organização da
Administração Pública, apenas verificável entre órgãos com atribuições comuns.
Deste modo, a hierarquia
administrativa deve ser configurada como resultado do conjunto de três
elementos: a hierarquia administrativa é o modelo de organização vertical da
Administração Pública; a hierarquia consubstancia uma relação
jurídico-funcional entre uma vários órgãos da mesma entidade pública; a
hierarquia envolve um processo de decisão administrativa decorrente de um órgão
ter competência para dispor da vontade decisória de todos os respetivos órgãos
subalternos.
Deste modo, para o
Professor Paulo Otero, a “hierarquia
administrativa consiste num modelo de organização vertical da Administração
Pública, através do qual se estabelece um vínculo jurídico entre uma
pluralidade de órgãos da mesma pessoa coletiva, conferindo-se a um deles
competência para dispor da vontade decisória de todos os restantes órgãos, os
quais se encontram adstritos a um dever legal de obediência”.
Para o Professor
Freitas do Amaral, a hierarquia é “o
modelo de organização administrativa vertical, constituído por dois ou mais órgãos
e agentes com atribuições comuns, ligados por um vínculo jurídico que confere
ao superior o poder de direção e impõe ao subalterno o dever de obediência”.
Claro que há formas de
organização horizontal, mas nesses não se verifica uma hierarquia. Mais ainda,
no nosso país, a maioria dos serviços públicos, na parte referente a relações
entre órgãos singulares, obedece ao modelo vertical hierárquico, herdado do
Império Romano.
Ora, para o Professor
Freitas do Amaral, os traços essenciais da hierarquia administrativa são: a
existência de um vínculo entre dois ou mais órgãos e agentes administrativos;
que as atribuições prosseguidas pelos superiores e subalternos sejam comuns; a
existência de uma “relação hierárquica”, i.e., um vínculo jurídico típico entre
superior e subalterno – esta é uma relação interorgânica (não é entre sujeitos
de direito, mas entre órgãos ou entre órgãos e agentes da mesma pessoa pública.
Cabe analisar aqui uma
crítica feita pelo Professor Paulo Otero a uma definição de “hierarquia” apresentada
anteriormente pelo Professor Freitas do Amaral, porque permite analisar um
elemento essencial. A crítica surgiu porque não só há atribuições comuns como
também podem haver competências comuns.
Porém, discorda do Professor Paulo Otero,
na medida em que este diz que o traço característico da posição de supremacia
do superior hierárquico se cifra na “competência
para dispor da vontade decisória de todos os restantes órgãos”, ou ainda
que o superior hierárquico tem “plena
disponibilidade da vontade decisória” do subalterno. Por um lado, o
subalterno não é um autómato. Por outro lado, a vontade do superior tem, em
regra, mais força jurídica do que a do subalterno, mas não dispõe desta, nem a
substitui: o subalterno é que decide se acarreta a ordem. Mesmo quando o
subalterno atua no cumprimento estrito de ordens legais emanadas dos seus
superiores, não é irrelevante o caráter livre e esclarecido da vontade por ele
manifestada.
Hierarquia
externa vs interna
A hierarquia comporta
duas modalidades: externa e interna.
A hierarquia interna é um
modelo de organização da Administração que tem por âmbito natural o serviço
público. É um modelo em que se toma a estrutura vertical como diretriz, para
estabelecer o ordenamento das atividades em que o serviço se traduz: a
hierarquia interna é uma hierarquia de agentes.
Nesta há sobretudo
vínculos de superioridade e subordinação entre agentes administrativos. Não se
trata da atribuição de competência entre órgãos, mas da divisão de trabalho
entre agentes.
Não está em causa o
exercício da competência da pessoa pública, mas o desempenho regular das
tarefas de um serviço público. Ou seja, está em causa a prossecução de
atividades e não a prática de atos jurídicos.
O Professor Freitas do
Amaral define-a como “modelo vertical de
organização interna dos serviços públicos que assenta na diferenciação entre
superiores e subalternos”.
A hierarquia externa
surge no quadro da pessoa coletiva pública. Também aqui se toma a estrutura
vertical como diretriz, mas desta feita para estabelecer o ordenamento dos
poderes jurídicos em que a competência consiste: a hierarquia externa é uma
hierarquia de órgãos.
Os vínculos de
superioridade e subordinação estabelecem-se entre órgãos da Administração. Está
em causa a repartição das competências entre aqueles a quem está confiado o
poder de tomar decisões em nome da pessoa coletiva. Os subalternos não se
limitam a desempenhar atividades, mas praticam atos administrativos. São atos
externos, projetam-se na esfera jurídica de outros sujeitos de direito.
Importa aqui que os subalternos são,
também eles, órgãos com competência externa.
Poderes
do superior: quais são e qual o seu conteúdo?
Cabe aqui analisar quais
os poderes atribuídos ao superior. Atentemos aqui a uma divergência doutrinária
entre o Professor Paulo Otero e o Professor Freitas do Amaral.
Por seu lado, o Professor
Paulo Otero agrupa os poderes do superior em: poder de direção, poderes de
controlo (nos quais integra os poderes de: inspeção, supervisão e disciplinar)
e poderes dispositivos da competência (nos quais integra os poderes de:
resolução de conflitos de competência, de delegação e de substituição
primária). Por sua vez, o Professor Freitas do Amaral não agrupa os poderes, e
reconhece menos poderes, sendo que reconhece como os três principais: o poder
de direção, de supervisão e disciplinar. Reconhece ainda o poder de inspeção, o
poder de decidir recursos, o poder de decidir conflitos de competência e o
poder de substituição.
Vamos então analisar cada
um destes poderes:
ü Poder de direção
Tanto o Professor Freitas
do Amaral como o Professor Paulo Otero autonomizam este poder.
O Professor Freitas do
Amaral define o poder de direção a “faculdade
de o superior dar ordens e instruções, em matéria de serviço, ao subalterno”.
O Professor Paulo Otero define-o enquanto a “faculdade de o superior hierárquico emanar comandos vinculativos a
todos os órgãos subordinados”, ambos prosseguem pela distinção entre ordens
e instruções.
Os comandos emanados pelo
superior podem ser específicos para uma situação concreta e individualizada
(denominados estes por ordens), ou podem gozar de aplicação generalizada e
abstrata para situações futuras (denominados estes por instruções).
Correspondem, respetivamente, a um poder de direção concreto e a um poder de
direção geral. O superior não se encontra também impedido de emanar diretivas
sobre a atividade dos subalternos, conferindo a estes uma maior liberdade de
ação na concretização dos objetivos determinados.
O poder de direção
mostra-se suscetível de abranger todas as atividades dos órgãos hierarquizados,
independentemente da competência destes últimos, não encontrando limites
materiais de incidência, segundo o Professor Paulo Otero. Esse direito
ilimitado confere ao poder de direção um estatuto central na caracterização da
hierarquia administrativa.
O poder de direção tem
duas concretizações diversas: os comandos podem limitar-se a reproduzir a lei,
tendo natureza declarativa, ou podem
introduzir elementos inovatórios na concretização desse espaço de
discricionariedade, tendo estes natureza constitutiva.
Este poder atribui ao
superior a faculdade de dar unidade aos serviços colocados na sua dependência,
promovendo a coordenação de tarefas, de forma a determinar uma maior eficiência
na atividade administrativa. Este poder atribui então uma faculdade geral de
ingerência na atividade dos subalternos. Sendo, aliás, um limite inerente ao
poder discricionário dos órgãos subalternos.
A circunstância de o
superior poder emanar comandos sobre qualquer área da competência do subalterno
e este estar vinculado a um dever geral de obediência, confere ao primeiro
órgão uma faculdade global de interferir sobre todas as matérias da competência
dos subalternos. Uma tal interferência tem de significar, forçosamente, a
existência de um nexo de competência comum entre superior e subalterno.
Enquanto ao nível da
competência externa não existe necessariamente identidade de competência
material entre superior e subalterno (logo o superior não pode praticar atos
externos sobre as matérias de competência do subalterno), ao nível da competência
interna há sempre a suscetibilidade de o superior emanar atos internos sobre
quaisquer matérias da competência dos subalternos.
Terão os comandos
hierárquicos natureza jurídica? Para o Professor Paulo Otero, não só a
circunstância de os comandos serem suscetíveis de produzir efeitos jurídicos,
como o facto de estes, possuindo fundamento jurídico, serem caracterizáveis
como atos de natureza jurídica, dá-nos a resposta.
Demonstrado o seu caráter
jurídico, cabe determinar se os comandos hierárquicos esgotam os efeitos no
interior da relação hierárquica, ou se podem produzir efeitos externos? Para o
Professor Freitas do Amaral, as manifestações do poder de direção esgotam-se no
âmbito da relação, não produzindo efeitos jurídicos externos. Estes comandos
são meros preceitos administrativos internos, não são normas jurídicas, logo
não podem os particulares invocar perante um tribunal administrativo a violação
de uma instrução ou ordem para fundamental o pedido de anulação de um ato
administrativo. Em oposição, o Professor Paulo Otero discorda, afirmando que,
apesar de os comandos hierárquicos serem atos eminentemente internos, tal não
exclui a possibilidade de os mesmos produzirem certos efeitos reflexos a nível
externo. Ainda assim, não pode ser conferida a tais atos internos a
possibilidade de modificar normas externas e muito menos de reduzir as
garantias dos administrados.
Existe entre os comandos
hierárquicos ligação hierárquico-normativa? O Professor Paulo Otero parece
defender que sim, assumindo dois diferentes critérios: critério orgânico (os
atos internos estruturam-se hierarquicamente segundo o posicionamento do
respetivo autor no contexto da organização vertical dos serviços) e critério
material (os atos internos ordenam-se hierarquicamente de acordo com o seu
conteúdo próprio. Os atos de conteúdo individual devem subordinar-se aos de
conteúdo geral do mesmo órgãos ou do seu superior hierárquico).
ü Poder de supervisão
Ambos os autores
analisados o consignam, embora o Professor Paulo Otero o integre na categoria
dos poderes de controlo. Mais ainda, ambos parecem concordar nas definições
apresentadas.
Este poder será, assim, o
poder de o superior hierárquico revogar, modificar ou suspender, total ou
parcialmente, os atos praticados pelos subalternos. Pode ser acionado de duas
formas: por iniciativa do superior ou por recurso hierárquico por parte do
interessado. A supervisão pode fundamentar-se em razões estritamente jurídicas
e em razoes de oportunidade e conveniência.
Ambos concordam que a
faculdade de revogação é o elemento essencial deste poder, e que esta pode
operar de duas formas distintas: pode consistir de um ato com o objetivo de
fazer cessar os efeitos produzidos por um outro ato anterior, ou pode
verificar-se através da prática de novo ato cujo conteúdo da sua regulamentação
seja incompatível com os efeitos de um ato anterior sobre a mesma matéria.
ü Poder disciplinar
Novamente analisado por
ambos os autores, o Professor Paulo Otero integra-o no grupo dos poderes de
controlo.
Este poder consiste na
faculdade de o superior punir o subalterno, mediante a aplicação de sanções
legalmente previstas como consequência de infrações da disciplina da função
pública cometidas.
É importante salientar
que o poder disciplinar não é uma mera garantia de cumprimento dos comandos
hierárquicos do superior. Tal poder, ao ser suscetível de incidir diretamente
sobre a esfera jurídica do subalterno, determina da parte deste uma maior
preocupação no cumprimento da legalidade em geral e na concretização do dever
de boa administração.
ü Poder de inspeção
Ainda analisado por ambos
os autores, é o último dos poderes de controlo.
Este poder consiste na
faculdade de o superior fiscalizar continuamente o comportamento dos
subalternos e o funcionamento dos serviços, para providenciar como melhor
entender e de, eventualmente, mandar proceder a inquéritos ou processos
disciplinares. É um poder instrumental, porque é com base nas informações por
este recolhidas que o superior decidirá usar ou não um dos três poderes principais.
ü Poder de resolução de conflitos de
competência
Embora tanto o Professor
Freitas do Amaral como o Professor Paulo Otero consagrem este poder, o
Professor Paulo Otero integra-o no conjunto dos poderes dispositivos da
competência.
Verificando-se uma situação
face à qual dois ou mais órgãos se consideram competentes (conflito positivo)
ou incompetentes (conflito negativo) para a resolução de determinado assunto,
compete ao superior hierárquico decidir qual o órgão competente. Este poder
pode ser exercido por iniciativa do superior, a pedido de um dos subordinados
conflituantes, ou através de pedido formulado por um administrado interessado.
Contrariamente ao
defendido na maior parte da doutrina, o Professor Paulo Otero considera que o
superior, pode não só decidir entre um dos dois órgãos, como pode considerar
ter a lei conferido a competência em questão a um órgão alheio ou ainda
considerar que a competência para o exercício recai sobre ele.
ü Poder de delegação
Este poder apenas é
consagrado expressamente pelo Professor Paulo Otero, que o integra no conjunto
dos poderes dispositivos da competência.
Este poder consiste na
faculdade atribuída por lei a um órgão, mediante a qual este tem a
possibilidade de escolher entre duas formas legais de prosseguir parte da sua
competência: ou a exerce em exclusivo, ou permite que outro órgão a exerça em
concorrência, através de um ato de delegação.
Visto ser a delegação de
poderes um tópico de aprofundamento, remete-se para o trabalho a ser realizado
perante este tema.
ü Poder de decidir recursos
Este apenas aparece
consagrado pelo Professor Freitas do Amaral.
Este poder consiste na
faculdade de o superior reapreciar os casos primeiramente decididos pelos
subalternos, podendo confirmar, anular ou revogar os atos impugnados. A este
meio de impugnação dá-se o nome de “recurso hierárquico”.
ü Poder de substituição/substituição
primária
Ambos os Professores
analisados mencionam que a existência deste poder é, de facto, contestada,
sendo que parte da doutrina não o considera como verdadeiro.
O poder de substituição seria, pois, a
faculdade de o superior exercer legitimamente competências conferidas, por lei
ou delegação de poderes, ao subalterno. Por um lado, o Professor Marcello
Caetano e o Professor Paulo Otero, entre muitos outros, entendem que tal poder
existe verdadeiramente. Sendo que se costuma exprimir o pensamento desta
corrente de opinião pela fórmula “a
competência do superior abrange sempre a dos subalternos”. Por outro lado,
o Professor Freitas do Amaral entende que, em regra, a competência do superior
hierárquico não engloba o poder de substituição, mesmo que no caso disponha de
um poder de revogação. I.e., não é válida, como princípio geral, a máxima de
que a competência do superior abrange a dos subalternos. Sustenta, aliás, a sua
posição invocando as finalidades que levam a lei a desconcertar a competência
dos superiores nos seus subalternos: melhor prossecução do interesse público
pelos órgãos situados na maior proximidade dos problemas a resolver e mais
ampla proteção dos direitos e interesses dos particulares, através da
possibilidade de controlo da primeira decisão pelos superiores hierárquicos.
Deveres do subalterno e o dever de obediência em especial
Aos poderes do superior
corresponde certos deveres dos subalternos. Estes são de vária índole: há os
que dizem diretamente respeito à relação de serviço (como o dever de
obediência, assiduidade, zelo, aplicação, respeitos pelos superiores, etc…),
mas há também outros que extravasam já o âmbito da relação (deveres na vida
privada).
Ainda que o estudo dos
deveres dos subalternos não caiba no âmbito do estudo da hierarquia, cabendo ao
estudo da matéria do estatuto dos agentes administrativos, será de particular
interesse o estudo do dever de obediência.
O dever de obediência
consiste na “obrigação de o subalterno
cumprir as ordens e instruções dos seus legítimos superiores hierárquicos,
dadas em objeto de serviço e sob a forma legal”. Resultam os seguintes
requisitos: os comandos hierárquicos provenham de legitimo superior
hierárquico, que sejam dadas em matéria de serviço, e que revistam a forma
legalmente prevista.
Logo, não existe dever de
obediência quando o comando emane de quem não seja legítimo superior do
subalterno (por este não ser órgão da Administração ou não pertencer à cadeia
hierárquica onde este está inserido), quando respeite a um assunto da vida
particular ou quando tenha sido dada verbalmente se a lei exigia que fosse
escrita. Nestes casos, a ordem é extrinsecamente ilegal, logo não impende sobre
o subalterno a obrigação de a acatar. Mas o que sucede quando, cumprindo os
requisitos apresentados, o comando seja intrinsecamente ilegal, i.e., implique,
se for acatada, a prática de um ato ilegal por parte do subalterno? Tal divide
a doutrina.
Enquanto uma parte da
doutrina, denominada de corrente hierárquica, onde se encontra Otto Mayer,
defende que existe sempre dever de obediência, sendo que admitir o contrário
seria subverter a razão de ser da hierarquia; outra parte da doutrina, a
corrente legalista, defendida por Hauriou, defende que não existe dever de
obediência em relação a ordens julgadas ilegais. Em Portugal, a primeira tese
foi defendida pelo Professor Marcello Caetano ainda que temperada nos termos
das leis portuguesas. Já o Professor João Tello de Magalhães Collaço adotou a
segunda tese.
À primeira vista, parece
não haver grande problema: se o nosso sistema é submetido ao princípio da
legalidade, então não se pode sequer admitir que os subalternos cumpram ordens
ilegais. Mas não é tão simples: primeiro, admitir o direito/dever de
desobedecer a ordens ilegais é um fator de indisciplina nos serviços público,
permitindo ao subalterno examinar e questionar a interpretação da lei
perfilhada pelo respetivo superior hierárquico; depois, consagra que entre duas
interpretações diferentes da lei, o sistema jurídico deve por princípio
preferir a do subalterno. Deste modo, o Professor Freitas do Amaral inclina-se
para a corrente legalista mas numa versão moderada, dadas as considerações
realizadas.
Porém, o mais importante
não é explicar uma tese, mas conhecer o que nos diz o direito vigente. O
sistema que prevalece atualmente é um sistema legalista mitigado, que resulta
do art. 271º, n.º2 e 3 CRP e
do art. 177º LGTFP (Lei Geral
do Trabalho em Funções Públicas). Logo, não há dever de obediência: senão em
relação aos comandos emanados de legítimo superior hierárquico, em objeto de
serviço e com forma legal (art. 271º,
n.º2 CRP e art. 73º, n.º8
LGTFP); mesmo em relação a estas, não há dever quando o cumprimento do
comando implique a prática de um crime (art.
271º, n.º3 CRP e 177º, n.º5
LGTFP) ou quando os comandos provenham de ato nulo (art. 162º, n.º1 CPA). Há dever
de obediência: em relação a todos os restantes comandos, i.e., as que emanarem
de legítimo superior hierárquico, em objeto de serviço, com forma legal, e não
implicarem a prática de um crime nem resultarem de um ato nulo; contudo, se
forem comandos ilegais, o funcionário ou agente que lhes der cumprimento só
ficará excluído da responsabilidade pelas consequências da execução da ordem se
antes da execução tiver reclamado ou tiver exigido a transmissão ou confirmação
delas por escrito (art. 177º, n.º1 e
2 LGTFP). Quando, porém, tenha sido dada ordem de cumprimento imediato,
basta para a exclusão da responsabilidade de quem a cumprir que a reclamação
seja enviada logo após a execução (art.
177º, n.º4 LGTFP).
O Professor Paulo Otero
levanta a questão do fundamento para a obediência aos comandos ilegais se
traduzir numa exceção ao princípio da legalidade. Conclui, aliás, que não,
porque resulta da própria lei ser legal o cumprimento de uma ordem ilegal. É
uma legalidade especial circunscrita ao âmbito interno da atividade
administrativa. Porém, o Professor Freitas do Amaral não concorda com esta
teoria. Para este autor, as leis ordinárias que imponham o dever de obediência
a ordens ilegais só serão legítimas se, e na medida em que, puderem ser
consideradas conformes à CRP. Esta exige a subordinação aos órgãos e agentes
administrativos à lei (art. 266º, n.º2 CRP).
Porém, há um preceito constitucional que expressamente legitima o dever de
obediência às ordens ilegais que não impliquem a prática de um crime (art. 271º, n.º3 CRP). Conclui, pois,
que o dever de obediência às ordens ilegais é uma exceção ao princípio da
legalidade, mas é uma exceção que é legitimada pela própria CRP.
Bibliografia:
Freitas do Amaral, Diogo,
Curso de Direito Administrativo, Vol. I,
4ª edição, 2016, Almedina, Coimbra, pp. 665 – 687
Otero, Paulo, Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa,
1992, Coimbra Editora, Coimbra, pp. 75 – 77 e 108 – 147
Beatriz Pestana Canada,
subturma 10, Turma B, 2ºano
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