quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Hierarquia Administrativa

Hierarquia em sentido jurídico vs em “sentido impróprio”
O Professor Freitas do Amaral realiza uma distinção a título explicativo entre a hierarquia em sentido jurídico, a que está em causa na administração, e outros conceitos denominados de hierarquia mas que não correspondem aos critérios de uma hierarquia jurídica.
Fala-se em hierarquia dos tribunais para significar que a organização judiciária se encontra estruturada por graus. Todavia, não temos aqui um vínculo característico da hierarquia em sentido jurídico, que é o vínculo de subordinação. Não é função do Supremo Tribunal de Justiça dar ordens aos Tribunais da Relação, nem é função destes dar ordens aos Tribunais de 1ª Instância.
Fala-se também em hierarquia de postos, i.e., uma forma de organização de carreiras em que os funcionários “progridem” passando de postos menos relevantes para outros que o sejam mais. Mas não existe aqui hierarquia em sentido jurídico. O Professor Freitas do Amaral exemplifica este caso dizendo que entre um 1º oficial e um 2º oficial não há superiores. São todos subalternos de um chefe de secção.
Por fim, fala ainda de uma hierarquia política, como aquela para as relações em que não se pode negar certas formas de supremacia e subordinação, como entre o Primeiro-Ministro e os restantes Ministros. Mas, novamente, não há aqui uma hierarquia em sentido jurídico, porque não há entre estes órgãos poderes de direção é deveres de obediência.
O que é a hierarquia administrativa?
Para o Professor Marcello Caetano, a hierarquia é “o ordenamento em unidades que compreendem subunidades de um ou mais graus e podem agrupar-se em grandes unidades, escalonando-se os poderes dos respetivos chefes de modo a assegurar a harmonia de cada conjunto. (…) A esta hierarquia corresponde uma hierarquia das respetivas chefias. Há em cada departamento um chefe superior, coadjuvado por chefes subalternos de vários grupos pelos quais estão repartidas tarefas e responsabilidades proporcionalmente ao escalão que se acham colocados”.
Para o Professor Cunha Valente, a hierarquia é “o conjunto de órgãos administrativos de competências diferenciadas mas com atribuições comuns, ligados por um vínculo de subordinação que se revela no agente superior pelo poder de direção e no subalterno pelo dever de obediência”.
Para o Professor Paulo Otero, é essencial determinar que:
ü  A hierarquia é um fenómeno jurídico complexo, não sendo definido integralmente por um único elemento;
ü  A estrutura interorgânica da competência não permite recolher qualquer elemento integrável na noção de hierarquia administrativa;
ü  O poder de direção é o elemento essencial da hierarquia, mas não é o seu único elemento. I.e., não há hierarquia sem poder de direção, mas não pode existir poder de direção sem hierarquia administrativa;
ü  Esta comporta uma supremacia da vontade do superior perante o subalterno;
ü  Esta é um modelo de organização da Administração Pública, apenas verificável entre órgãos com atribuições comuns.
Deste modo, a hierarquia administrativa deve ser configurada como resultado do conjunto de três elementos: a hierarquia administrativa é o modelo de organização vertical da Administração Pública; a hierarquia consubstancia uma relação jurídico-funcional entre uma vários órgãos da mesma entidade pública; a hierarquia envolve um processo de decisão administrativa decorrente de um órgão ter competência para dispor da vontade decisória de todos os respetivos órgãos subalternos.
Deste modo, para o Professor Paulo Otero, a “hierarquia administrativa consiste num modelo de organização vertical da Administração Pública, através do qual se estabelece um vínculo jurídico entre uma pluralidade de órgãos da mesma pessoa coletiva, conferindo-se a um deles competência para dispor da vontade decisória de todos os restantes órgãos, os quais se encontram adstritos a um dever legal de obediência”.
Para o Professor Freitas do Amaral, a hierarquia é “o modelo de organização administrativa vertical, constituído por dois ou mais órgãos e agentes com atribuições comuns, ligados por um vínculo jurídico que confere ao superior o poder de direção e impõe ao subalterno o dever de obediência”.
Claro que há formas de organização horizontal, mas nesses não se verifica uma hierarquia. Mais ainda, no nosso país, a maioria dos serviços públicos, na parte referente a relações entre órgãos singulares, obedece ao modelo vertical hierárquico, herdado do Império Romano.
Ora, para o Professor Freitas do Amaral, os traços essenciais da hierarquia administrativa são: a existência de um vínculo entre dois ou mais órgãos e agentes administrativos; que as atribuições prosseguidas pelos superiores e subalternos sejam comuns; a existência de uma “relação hierárquica”, i.e., um vínculo jurídico típico entre superior e subalterno – esta é uma relação interorgânica (não é entre sujeitos de direito, mas entre órgãos ou entre órgãos e agentes da mesma pessoa pública.
Cabe analisar aqui uma crítica feita pelo Professor Paulo Otero a uma definição de “hierarquia” apresentada anteriormente pelo Professor Freitas do Amaral, porque permite analisar um elemento essencial. A crítica surgiu porque não só há atribuições comuns como também podem haver competências comuns.
Porém, discorda do Professor Paulo Otero, na medida em que este diz que o traço característico da posição de supremacia do superior hierárquico se cifra na “competência para dispor da vontade decisória de todos os restantes órgãos”, ou ainda que o superior hierárquico tem “plena disponibilidade da vontade decisória” do subalterno. Por um lado, o subalterno não é um autómato. Por outro lado, a vontade do superior tem, em regra, mais força jurídica do que a do subalterno, mas não dispõe desta, nem a substitui: o subalterno é que decide se acarreta a ordem. Mesmo quando o subalterno atua no cumprimento estrito de ordens legais emanadas dos seus superiores, não é irrelevante o caráter livre e esclarecido da vontade por ele manifestada.
Hierarquia externa vs interna
A hierarquia comporta duas modalidades: externa e interna.
A hierarquia interna é um modelo de organização da Administração que tem por âmbito natural o serviço público. É um modelo em que se toma a estrutura vertical como diretriz, para estabelecer o ordenamento das atividades em que o serviço se traduz: a hierarquia interna é uma hierarquia de agentes.
Nesta há sobretudo vínculos de superioridade e subordinação entre agentes administrativos. Não se trata da atribuição de competência entre órgãos, mas da divisão de trabalho entre agentes.
Não está em causa o exercício da competência da pessoa pública, mas o desempenho regular das tarefas de um serviço público. Ou seja, está em causa a prossecução de atividades e não a prática de atos jurídicos.
O Professor Freitas do Amaral define-a como “modelo vertical de organização interna dos serviços públicos que assenta na diferenciação entre superiores e subalternos”.
A hierarquia externa surge no quadro da pessoa coletiva pública. Também aqui se toma a estrutura vertical como diretriz, mas desta feita para estabelecer o ordenamento dos poderes jurídicos em que a competência consiste: a hierarquia externa é uma hierarquia de órgãos.
Os vínculos de superioridade e subordinação estabelecem-se entre órgãos da Administração. Está em causa a repartição das competências entre aqueles a quem está confiado o poder de tomar decisões em nome da pessoa coletiva. Os subalternos não se limitam a desempenhar atividades, mas praticam atos administrativos. São atos externos, projetam-se na esfera jurídica de outros sujeitos de direito.
Importa aqui que os subalternos são, também eles, órgãos com competência externa.
Poderes do superior: quais são e qual o seu conteúdo?
Cabe aqui analisar quais os poderes atribuídos ao superior. Atentemos aqui a uma divergência doutrinária entre o Professor Paulo Otero e o Professor Freitas do Amaral.
Por seu lado, o Professor Paulo Otero agrupa os poderes do superior em: poder de direção, poderes de controlo (nos quais integra os poderes de: inspeção, supervisão e disciplinar) e poderes dispositivos da competência (nos quais integra os poderes de: resolução de conflitos de competência, de delegação e de substituição primária). Por sua vez, o Professor Freitas do Amaral não agrupa os poderes, e reconhece menos poderes, sendo que reconhece como os três principais: o poder de direção, de supervisão e disciplinar. Reconhece ainda o poder de inspeção, o poder de decidir recursos, o poder de decidir conflitos de competência e o poder de substituição.
Vamos então analisar cada um destes poderes:
ü  Poder de direção
Tanto o Professor Freitas do Amaral como o Professor Paulo Otero autonomizam este poder.
O Professor Freitas do Amaral define o poder de direção a “faculdade de o superior dar ordens e instruções, em matéria de serviço, ao subalterno”. O Professor Paulo Otero define-o enquanto a “faculdade de o superior hierárquico emanar comandos vinculativos a todos os órgãos subordinados”, ambos prosseguem pela distinção entre ordens e instruções.
Os comandos emanados pelo superior podem ser específicos para uma situação concreta e individualizada (denominados estes por ordens), ou podem gozar de aplicação generalizada e abstrata para situações futuras (denominados estes por instruções). Correspondem, respetivamente, a um poder de direção concreto e a um poder de direção geral. O superior não se encontra também impedido de emanar diretivas sobre a atividade dos subalternos, conferindo a estes uma maior liberdade de ação na concretização dos objetivos determinados.
O poder de direção mostra-se suscetível de abranger todas as atividades dos órgãos hierarquizados, independentemente da competência destes últimos, não encontrando limites materiais de incidência, segundo o Professor Paulo Otero. Esse direito ilimitado confere ao poder de direção um estatuto central na caracterização da hierarquia administrativa.
O poder de direção tem duas concretizações diversas: os comandos podem limitar-se a reproduzir a lei, tendo natureza declarativa, ou podem introduzir elementos inovatórios na concretização desse espaço de discricionariedade, tendo estes natureza constitutiva.
Este poder atribui ao superior a faculdade de dar unidade aos serviços colocados na sua dependência, promovendo a coordenação de tarefas, de forma a determinar uma maior eficiência na atividade administrativa. Este poder atribui então uma faculdade geral de ingerência na atividade dos subalternos. Sendo, aliás, um limite inerente ao poder discricionário dos órgãos subalternos.
A circunstância de o superior poder emanar comandos sobre qualquer área da competência do subalterno e este estar vinculado a um dever geral de obediência, confere ao primeiro órgão uma faculdade global de interferir sobre todas as matérias da competência dos subalternos. Uma tal interferência tem de significar, forçosamente, a existência de um nexo de competência comum entre superior e subalterno.
Enquanto ao nível da competência externa não existe necessariamente identidade de competência material entre superior e subalterno (logo o superior não pode praticar atos externos sobre as matérias de competência do subalterno), ao nível da competência interna há sempre a suscetibilidade de o superior emanar atos internos sobre quaisquer matérias da competência dos subalternos.
Terão os comandos hierárquicos natureza jurídica? Para o Professor Paulo Otero, não só a circunstância de os comandos serem suscetíveis de produzir efeitos jurídicos, como o facto de estes, possuindo fundamento jurídico, serem caracterizáveis como atos de natureza jurídica, dá-nos a resposta.
Demonstrado o seu caráter jurídico, cabe determinar se os comandos hierárquicos esgotam os efeitos no interior da relação hierárquica, ou se podem produzir efeitos externos? Para o Professor Freitas do Amaral, as manifestações do poder de direção esgotam-se no âmbito da relação, não produzindo efeitos jurídicos externos. Estes comandos são meros preceitos administrativos internos, não são normas jurídicas, logo não podem os particulares invocar perante um tribunal administrativo a violação de uma instrução ou ordem para fundamental o pedido de anulação de um ato administrativo. Em oposição, o Professor Paulo Otero discorda, afirmando que, apesar de os comandos hierárquicos serem atos eminentemente internos, tal não exclui a possibilidade de os mesmos produzirem certos efeitos reflexos a nível externo. Ainda assim, não pode ser conferida a tais atos internos a possibilidade de modificar normas externas e muito menos de reduzir as garantias dos administrados.
Existe entre os comandos hierárquicos ligação hierárquico-normativa? O Professor Paulo Otero parece defender que sim, assumindo dois diferentes critérios: critério orgânico (os atos internos estruturam-se hierarquicamente segundo o posicionamento do respetivo autor no contexto da organização vertical dos serviços) e critério material (os atos internos ordenam-se hierarquicamente de acordo com o seu conteúdo próprio. Os atos de conteúdo individual devem subordinar-se aos de conteúdo geral do mesmo órgãos ou do seu superior hierárquico).
ü  Poder de supervisão
Ambos os autores analisados o consignam, embora o Professor Paulo Otero o integre na categoria dos poderes de controlo. Mais ainda, ambos parecem concordar nas definições apresentadas.
Este poder será, assim, o poder de o superior hierárquico revogar, modificar ou suspender, total ou parcialmente, os atos praticados pelos subalternos. Pode ser acionado de duas formas: por iniciativa do superior ou por recurso hierárquico por parte do interessado. A supervisão pode fundamentar-se em razões estritamente jurídicas e em razoes de oportunidade e conveniência.
Ambos concordam que a faculdade de revogação é o elemento essencial deste poder, e que esta pode operar de duas formas distintas: pode consistir de um ato com o objetivo de fazer cessar os efeitos produzidos por um outro ato anterior, ou pode verificar-se através da prática de novo ato cujo conteúdo da sua regulamentação seja incompatível com os efeitos de um ato anterior sobre a mesma matéria.
ü  Poder disciplinar
Novamente analisado por ambos os autores, o Professor Paulo Otero integra-o no grupo dos poderes de controlo.
Este poder consiste na faculdade de o superior punir o subalterno, mediante a aplicação de sanções legalmente previstas como consequência de infrações da disciplina da função pública cometidas.
É importante salientar que o poder disciplinar não é uma mera garantia de cumprimento dos comandos hierárquicos do superior. Tal poder, ao ser suscetível de incidir diretamente sobre a esfera jurídica do subalterno, determina da parte deste uma maior preocupação no cumprimento da legalidade em geral e na concretização do dever de boa administração.
ü  Poder de inspeção
Ainda analisado por ambos os autores, é o último dos poderes de controlo.
Este poder consiste na faculdade de o superior fiscalizar continuamente o comportamento dos subalternos e o funcionamento dos serviços, para providenciar como melhor entender e de, eventualmente, mandar proceder a inquéritos ou processos disciplinares. É um poder instrumental, porque é com base nas informações por este recolhidas que o superior decidirá usar ou não um dos três poderes principais.
ü  Poder de resolução de conflitos de competência
Embora tanto o Professor Freitas do Amaral como o Professor Paulo Otero consagrem este poder, o Professor Paulo Otero integra-o no conjunto dos poderes dispositivos da competência.
Verificando-se uma situação face à qual dois ou mais órgãos se consideram competentes (conflito positivo) ou incompetentes (conflito negativo) para a resolução de determinado assunto, compete ao superior hierárquico decidir qual o órgão competente. Este poder pode ser exercido por iniciativa do superior, a pedido de um dos subordinados conflituantes, ou através de pedido formulado por um administrado interessado.
Contrariamente ao defendido na maior parte da doutrina, o Professor Paulo Otero considera que o superior, pode não só decidir entre um dos dois órgãos, como pode considerar ter a lei conferido a competência em questão a um órgão alheio ou ainda considerar que a competência para o exercício recai sobre ele.
ü  Poder de delegação
Este poder apenas é consagrado expressamente pelo Professor Paulo Otero, que o integra no conjunto dos poderes dispositivos da competência.
Este poder consiste na faculdade atribuída por lei a um órgão, mediante a qual este tem a possibilidade de escolher entre duas formas legais de prosseguir parte da sua competência: ou a exerce em exclusivo, ou permite que outro órgão a exerça em concorrência, através de um ato de delegação.
Visto ser a delegação de poderes um tópico de aprofundamento, remete-se para o trabalho a ser realizado perante este tema.
ü  Poder de decidir recursos
Este apenas aparece consagrado pelo Professor Freitas do Amaral.
Este poder consiste na faculdade de o superior reapreciar os casos primeiramente decididos pelos subalternos, podendo confirmar, anular ou revogar os atos impugnados. A este meio de impugnação dá-se o nome de “recurso hierárquico”.
ü  Poder de substituição/substituição primária
Ambos os Professores analisados mencionam que a existência deste poder é, de facto, contestada, sendo que parte da doutrina não o considera como verdadeiro.
O poder de substituição seria, pois, a faculdade de o superior exercer legitimamente competências conferidas, por lei ou delegação de poderes, ao subalterno. Por um lado, o Professor Marcello Caetano e o Professor Paulo Otero, entre muitos outros, entendem que tal poder existe verdadeiramente. Sendo que se costuma exprimir o pensamento desta corrente de opinião pela fórmula “a competência do superior abrange sempre a dos subalternos”. Por outro lado, o Professor Freitas do Amaral entende que, em regra, a competência do superior hierárquico não engloba o poder de substituição, mesmo que no caso disponha de um poder de revogação. I.e., não é válida, como princípio geral, a máxima de que a competência do superior abrange a dos subalternos. Sustenta, aliás, a sua posição invocando as finalidades que levam a lei a desconcertar a competência dos superiores nos seus subalternos: melhor prossecução do interesse público pelos órgãos situados na maior proximidade dos problemas a resolver e mais ampla proteção dos direitos e interesses dos particulares, através da possibilidade de controlo da primeira decisão pelos superiores hierárquicos.
Deveres do subalterno e o dever de obediência em especial
Aos poderes do superior corresponde certos deveres dos subalternos. Estes são de vária índole: há os que dizem diretamente respeito à relação de serviço (como o dever de obediência, assiduidade, zelo, aplicação, respeitos pelos superiores, etc…), mas há também outros que extravasam já o âmbito da relação (deveres na vida privada).
Ainda que o estudo dos deveres dos subalternos não caiba no âmbito do estudo da hierarquia, cabendo ao estudo da matéria do estatuto dos agentes administrativos, será de particular interesse o estudo do dever de obediência.
O dever de obediência consiste na “obrigação de o subalterno cumprir as ordens e instruções dos seus legítimos superiores hierárquicos, dadas em objeto de serviço e sob a forma legal”. Resultam os seguintes requisitos: os comandos hierárquicos provenham de legitimo superior hierárquico, que sejam dadas em matéria de serviço, e que revistam a forma legalmente prevista.
Logo, não existe dever de obediência quando o comando emane de quem não seja legítimo superior do subalterno (por este não ser órgão da Administração ou não pertencer à cadeia hierárquica onde este está inserido), quando respeite a um assunto da vida particular ou quando tenha sido dada verbalmente se a lei exigia que fosse escrita. Nestes casos, a ordem é extrinsecamente ilegal, logo não impende sobre o subalterno a obrigação de a acatar. Mas o que sucede quando, cumprindo os requisitos apresentados, o comando seja intrinsecamente ilegal, i.e., implique, se for acatada, a prática de um ato ilegal por parte do subalterno? Tal divide a doutrina.
Enquanto uma parte da doutrina, denominada de corrente hierárquica, onde se encontra Otto Mayer, defende que existe sempre dever de obediência, sendo que admitir o contrário seria subverter a razão de ser da hierarquia; outra parte da doutrina, a corrente legalista, defendida por Hauriou, defende que não existe dever de obediência em relação a ordens julgadas ilegais. Em Portugal, a primeira tese foi defendida pelo Professor Marcello Caetano ainda que temperada nos termos das leis portuguesas. Já o Professor João Tello de Magalhães Collaço adotou a segunda tese.
À primeira vista, parece não haver grande problema: se o nosso sistema é submetido ao princípio da legalidade, então não se pode sequer admitir que os subalternos cumpram ordens ilegais. Mas não é tão simples: primeiro, admitir o direito/dever de desobedecer a ordens ilegais é um fator de indisciplina nos serviços público, permitindo ao subalterno examinar e questionar a interpretação da lei perfilhada pelo respetivo superior hierárquico; depois, consagra que entre duas interpretações diferentes da lei, o sistema jurídico deve por princípio preferir a do subalterno. Deste modo, o Professor Freitas do Amaral inclina-se para a corrente legalista mas numa versão moderada, dadas as considerações realizadas.
Porém, o mais importante não é explicar uma tese, mas conhecer o que nos diz o direito vigente. O sistema que prevalece atualmente é um sistema legalista mitigado, que resulta do art. 271º, n.º2 e 3 CRP e do art. 177º LGTFP (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas). Logo, não há dever de obediência: senão em relação aos comandos emanados de legítimo superior hierárquico, em objeto de serviço e com forma legal (art. 271º, n.º2 CRP e art. 73º, n.º8 LGTFP); mesmo em relação a estas, não há dever quando o cumprimento do comando implique a prática de um crime (art. 271º, n.º3 CRP e 177º, n.º5 LGTFP) ou quando os comandos provenham de ato nulo (art. 162º, n.º1 CPA). Há dever de obediência: em relação a todos os restantes comandos, i.e., as que emanarem de legítimo superior hierárquico, em objeto de serviço, com forma legal, e não implicarem a prática de um crime nem resultarem de um ato nulo; contudo, se forem comandos ilegais, o funcionário ou agente que lhes der cumprimento só ficará excluído da responsabilidade pelas consequências da execução da ordem se antes da execução tiver reclamado ou tiver exigido a transmissão ou confirmação delas por escrito (art. 177º, n.º1 e 2 LGTFP). Quando, porém, tenha sido dada ordem de cumprimento imediato, basta para a exclusão da responsabilidade de quem a cumprir que a reclamação seja enviada logo após a execução (art. 177º, n.º4 LGTFP).
O Professor Paulo Otero levanta a questão do fundamento para a obediência aos comandos ilegais se traduzir numa exceção ao princípio da legalidade. Conclui, aliás, que não, porque resulta da própria lei ser legal o cumprimento de uma ordem ilegal. É uma legalidade especial circunscrita ao âmbito interno da atividade administrativa. Porém, o Professor Freitas do Amaral não concorda com esta teoria. Para este autor, as leis ordinárias que imponham o dever de obediência a ordens ilegais só serão legítimas se, e na medida em que, puderem ser consideradas conformes à CRP. Esta exige a subordinação aos órgãos e agentes administrativos à lei (art. 266º, n.º2 CRP). Porém, há um preceito constitucional que expressamente legitima o dever de obediência às ordens ilegais que não impliquem a prática de um crime (art. 271º, n.º3 CRP). Conclui, pois, que o dever de obediência às ordens ilegais é uma exceção ao princípio da legalidade, mas é uma exceção que é legitimada pela própria CRP.

Bibliografia:
Freitas do Amaral, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 4ª edição, 2016, Almedina, Coimbra, pp. 665 – 687
Otero, Paulo, Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa, 1992, Coimbra Editora, Coimbra, pp. 75 – 77 e 108 – 147


Beatriz Pestana Canada, subturma 10, Turma B, 2ºano

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