sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Relações e distinções entre o direito administrativo e outros ramos do direito

O direito administrativo é um ramo do direito composto por regras e princípios que dizem respeito à função administrativa. É, segundo o critério de classificação do “interesse prosseguido”, um direito público, pelo facto de a função administrativa prosseguir interesses públicos. Este é o núcleo essencial do direito administrativo. Após a exposição do seu âmbito de aplicação e características gerais, abre-se o caminho para de seguida analisar as relações e distinções entre o direito administrativo e os outros ramos do direito.

O seu âmbito de aplicação abrange não só o funcionamento da administração pública enquanto órgão, como também a atuação de todos os sujeitos jurídicos no exercício da função administrativa.
Abrange ainda todos os setores do direito administrativo que não tenham uma regulação especial (designada de direito administrativo especial, em razão dos seus objetos específicos e divergências de regime face ao direito administrativo comum). Além disso, subsidiariamente, pode ser aplicada a vários outros ramos de direito, como por exemplo o direito privado, não sendo um direito exclusivo da função administrativa.
O professor Marcelo Rebelo de Sousa aponta ainda outras características do direito administrativo: é fortemente condicionado pelas conceções políticas, económicas, culturais e até constitucionais do momento (o que se afigura natural, visto que integra o direito público); é fragmentário (uma vez que não regula globalmente o exercício da função administrativa, facto explicável pela lenta separação do direito administrativo ao direito privado e pelo surgimento de novos setores da vida social que requerem um regime próprio); apresenta lacunas e uma razoável margem de liberdade à administração pública, devido às diferentes configurações que o interesse público pode tomar casuisticamente; não é codificado na sua totalidade, devido a fatores como a sua natureza fragmentária, juventude e mutabilidade conjuntural (tal como mencionada anteriormente).
De seguida, apresentam-se as relações e distinções entre o direito administrativo e os outros ramos do direito.

Direito administrativo e Direito constitucional
Durante o Estado liberal, a Constituição tinha uma menor importância para o direito administrativo, uma vez que esta limitava-se a estabelecer os órgãos políticos estaduais e alguns direitos fundamentais dos indivíduos.
A partir do Estado social até à atualidade, o direito constitucional, enquanto base de todo o direito público do Estado, encontra-se indissociavelmente ligado ao direito administrativo, acabando este último por expressar o modelo concretizado numa Constituição. Tanto até, que Fritz Werner afirma que o “direito administrativo é o direito constitucional concretizado”.
Por exemplo, opções constitucionais como a centralização, descentralização, o sistema económico e o regime político, influenciam marcadamente o direito administrativo.
De facto, e na nossa ordem jurídica, existem vários pontos de convergência entre estes dois ramos do Direito:
·         Várias normas constitucionais, presentes na Constituição da República Portuguesa (doravante “CRP”) são formalmente consideradas como apenas pertencentes ao direito constitucional, por estarem plasmadas nesse texto constitucional. No entanto, tendo em conta a sua natureza e conteúdo, rapidamente se conclui que materialmente são normas de Direito administrativo.
o   É o caso de muitas normas referentes à organização e a atividade da Administração Pública, ao poder local, à polícia e às forças armadas, à intervenção económica, social e cultural por parte do Estado, e aos tribunais administrativos (veja-se, por exemplo, a parte II, e os títulos VIII, IX e X da Parte III).
·         A CRP também consagra órgãos políticos, que são alvo de regulação pelo direito administrativo, contribuindo para a execução e garantia da Constituição. A título de exemplo, o Governo, embora com o seu estatuto de órgão político expresso na CRP, tem funções administrativas, reguladas em leis administrativas avulsas.

Direito administrativo e Direito internacional
O Direito internacional é, simplicissimamente definido, um direito que provém de fontes internacionais.
Frequentemente o direito internacional não vigente em ordens jurídicas estaduais, como o que vigora nas organizações internacionais, aproxima-se com o direito administrativo: é o caso do “direito administrativo internacional”, que regula a estrutura e o funcionamento desses sujeitos internacionais não estaduais, bem como o exercício da sua função administrativa.
Não obstante, muitas das normas de direito internacional têm vigência interna nos Estados, podendo deste modo simultaneamente constituir normas de direito administrativo.
De facto, é regular a prática dos Estados de se vincularem internacionalmente a tratados com normas jurídicas aplicáveis às administrações públicas internas das partes (“Direito Internacional Administrativo”).
Inversamente, o direito administrativo interno contribui efetivamente para o desenvolvimento e depuração normativa, jurisprudencial e científica do direito comunitário europeu.
Em Portugal, a CRP prevê no artigo 8.º a receção automática e plena do direito internacional na ordem jurídica portuguesa e a primazia do direito internacional face ao direito ordinário interno, que por sua vez abrange normas de direito administrativo.

Direito administrativo e Direito penal
O direito penal, enquanto ramo de direito público que estabelece a responsabilidade criminal (ao qualificar certos factos como crimes) e a consequente aplicação de penas criminais (as sanções mais graves aplicáveis pela ordem jurídica em resposta aos factos ilícitos mais graves), apresenta simultaneamente pontos de contacto como pontos divergentes em relação ao direito administrativo.
Começando pelas distinções entre estes dois ramos do direito, segundo a opinião do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, o direito penal é essencialmente repressivo (ou seja, pretende estabelecer as penas aplicadas aos autores dos crimes) enquanto que o direito administrativo é essencialmente preventivo (ou seja, pretende estabelecer precauções de modo a evitar atos criminosos).
A título de exemplo, veja-se que o direito fundamental da vida é salvaguardado pelo direito penal pela proibição do homicídio e pelo estabelecimento da sua sanção penal correspondente. Por outro lado, as normas com vista a evitar o acontecimento desse crime (exceto a função de prevenção da própria sanção penal para o autor do crime) são do âmbito do direito administrativo, através da atribuição de poderes à polícia para investigar crimes, fiscalizar locais, entre outros.
O Professor Diogo Freitas do Amaral comenta esta visão, conotando-a simplista, uma vez que ao direito penal não cabem apenas finalidades repressivas, mas também preventivas, e ao direito administrativo também cabem fins repressivos.
Quanto às proximidades, referem-se vários pontos, nomeadamente a relação entre o direito de mera ordenação social e o direito penal. A sua distinção é feita formalmente, uma vez que materialmente, as normas de direito de mera ordenação social são não só idênticas às do direito penal, como influenciadas por este. De facto, enquanto que o direito penal aplica penas em resposta a crimes, o direito de mera ordenação social aplica contraordenações, que se traduzem em coimas pecuniárias (embora nunca a prisão).
Além disso, verifica-se a existência de alguma sobreposição de objetivos: o direito criminal visa proteger os bens e valores jurídicos essenciais à sociedade, que frequentemente correspondem aos interesses públicos prosseguidos pela Administração Pública.

Direito administrativo e Direito judiciário
O direito judiciário é um ramo do direito público que regula a função jurisdicional do Estado, nomeadamente a orgânica e funcionamento dos tribunais.
Logo, à partida é possível traçar a aproximação que ambos têm como objeto regular o exercício de uma função do Estado em órgãos específicos.
Existe um importante ramo do direito administrativo que se aproxima do direito judiciário, especificamente do direito processual judicial: o direito processual administrativo (ou direito do contencioso administrativo), que regula os tribunais administrativos.
As suas relações verificam-se, por exemplo, em normas jurídicas que mandem aplicar supletivamente, nos tribunais administrativos, o direito processual civil.
Além disso, existem entre os tribunais judiciais e os administrativos semelhanças de alguns atos praticados no seu funcionamento interno: os tribunais judiciais realizam atos materialmente administrativos, como promoções de funcionários, ordens e instruções de serviços.

Direito administrativo e Direito privado, nomeadamente o Direito civil
A relação do direito civil com o direito administrativo é também composta tanto por divergências estruturais como por influências mútuas.
Uma das divergências mais notória é a prevalência do interesse público em sede de direito administrativo por oposição do princípio da igualdade entre sujeitos, prevalente direito privado.
Outra trata-se do próprio enquadramento do direito administrativo: enquanto que inicialmente era um direito excecional face ao direito civil (este último sendo considerado o direito comum), hoje o direito administrativo é o direito comum da função administrativa, sendo um complexo normativo autónomo.
Apesar disso, note-se que existem ainda hoje remissões para o direito civil, embora fortemente condicionadas.

Inversamente, ambos os ramos do direito realizaram uma influência mútua no desenvolvimento dos seus regimes.
Por exemplo, como aponta o professor Diogo Freitas do Amaral, o direito civil influenciou o direito administrativo nas bases do conceito de contrato administrativo e da teoria da responsabilidade civil da administração, bem como no princípio da boa fé. De facto, as semelhanças técnicas justificam-se pela inicial extração de soluções, conceitos, instrumentos e denominações ao direito civil, uma vez que o direito civil era considerado o “repositório comum da tradição jurídica europeia”.
Já atualmente o direito administrativo influenciou o direito civil na construção da figura do ato, e particularmente do negócio jurídico unilateral, pela teoria do ato administrativo; pela construção do instituto da alteração das circunstâncias, entre outros. Logo, nos dias de hoje a tendência é inversa: o direito civil inspira-se no direito administrativo, por ser também altamente depurado em termos de ciência jurídica.

Em suma, concluo que o direito administrativo, enquanto ramo de direito inserido numa ordem jurídica que se pretende complexa, sistemática e conexa, tem inevitavelmente (e como qualquer outro ramo de direito) pontos de contacto com os demais ramos. Apesar da também inevitável existência de pontos divergentes na comparação entre os ramos de direito, o crescimento das zonas em que se nota alguma sobreposição de regimes, ou princípios, ou objetivos, permite-me constatar que a distinção entre ramos de direito ou entre direito público e privado é cada vez mais ténue e provavelmente falharia uma total dedução lógica e racional, pelo que à luz da ciência jurídica atual justifica-se maioritariamente apenas por motivos histórico-culturais.

Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, I, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2015
CAUPERS João, Introdução ao Direito Administrativo, 10ª edição, 2009
OTERO, Paulo, Manual de Direito Administrativo I, Almedina, Coimbra, 2015
CAETANO, Marcello. Manual De Direito Administrativo. 4ª ed., Coimbra Editora, LDA, 1963.
REBELO DE SOUSA, Marcelo / SALGADO DE MATOS, André, Direito Administrativo Geral- tomo I, 14ª edição, D. Quixote, Lisboa


Rafael Matias, subturma 10, nº 57046

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