sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

As Instituições Particulares de Interesse Público

1. Introdução
   Esta publicação tem como objetivo dar a conhecer um fenómeno de regulação de certas entidades privadas pelo Direito Administrativo, não obstante o facto de não integrarem a Administração Pública em sentido orgânico. Estas entidades subordinam-se necessariamente a um regime parcialmente traçado pelo Direito Administrativo porque a atividade que desenvolvem e os fins que prosseguem são considerados de interesse geral e público.

2. Generalidades
   Marcello Caetano chamava a este tipo de entidades «pessoas coletivas de direito privado e regime administrativo». Contudo, e adotando a perspetiva de Freitas do Amaral, creio que essa não será a definição mais correta, por duas razões: por um lado, o regime jurídico dessas entidades não é apenas administrativo, resultando pelo contrário de uma conjugação entre o direito administrativo e o direito privado; por outro lado, esta definição, ao focar-se na caraterização do regime, acaba por não revelar que é a natureza destas entidades: é o regime que resulta da natureza, e não o inverso, sendo por esse motivo importante começar por aí.
   Neste sentido, na esteira da definição formulada pelo prof. Freitas do Amaral, podemos definir estas «entidades particulares de interesse público» enquanto pessoas coletivas que, por prosseguirem fins de interesses público, têm o dever de cooperar com a Administração Pública e ficam sujeitas, em parte, a um regime especial de Direito Administrativo.

Este fenómeno tende a ocorrer por vários motivos:
a) porque a Administração Pública não consegue arcar, por si só, com todas as tarefas que é necessário desenvolver em prol da coletividade, fazendo portanto apelo aos capitais particulares de forma a assegurar a sua efetiva realização – exercício privado de funções públicas;
b) por a lei considerar que algumas coletividades privadas são de tal forma relevantes no plano do interesse coletivo que, sem se pretender ir ao ponto de as nacionalizar, decide contudo submetê-las a uma fiscalização permanente ou até mesmo, no limite, a uma direta intervenção por parte da Administração Pública (v.g., designando um delegado do Governo para as fiscalizar) – controlo público de atividades privadas;
c) por fim, casos em que a lei admite que em determinadas áreas de atividade sejam criadas entidades privadas, por iniciativa particular, para se dedicarem à prossecução de tarefas de interesse geral, numa base voluntária e altruísta, realizadas em simultâneo com a Administração Públicas (v.g., instituições de assistência ou beneficiência) – coexistência colaborante entre atividades públicas e privadas;

   As situações descritas não representam um modo de inserção orgânica de entidades privadas no setor público, mas antes um modo de descentralização funcional do setor público, por transferência de poderes próprios deste para a órbita do setor privado, ou por autorização de desenvolvimento de uma atividade concorrencial pelos particulares com a Administração no desempenho de certas tarefas comuns.

3. Espécies
As instituições particulares de interesse público dividem-se em duas espécies distintas, a saber:
a) As sociedades de interesse coletivo;
b) As pessoas coletivas de utilidade pública.

3.1 Sociedades de interesse coletivo
   Podemos defini-las como empresas privadas de fim lucrativo, que por exercerem poderes públicos ou estarem submetidas a uma fiscalização especial da Administração Pública, ficam sujeitas a um regime jurídico específico traçado pelo Direito Administrativo.
  Temos aqui, como principais exemplos: concessionárias, empresas de economia mista, sociedades participadas pelo Estado, etc.

   Por terem um fim lucrativo, são sociedades, e nisto se distinguem das pessoas coletivas de utilidade pública, que não o têm.
   Como já resultou do esquema inicialmente apresentado, estas entidades subordinam-se a um regime jurídico específico, traçado pelo Direito administrativo, por um de dois motivos: ou porque a empresa, embora privada, se dedica, estatutária ou contratualmente, ao exercício de poderes públicos que a Administração transferiu para ela; ou porque as circunstâncias obrigaram a Administração a colocar a empresa privada num regime de fiscalização especial por motivos de interesse público. Em ambos os casos, a lei sujeita este tipo de empresas privadas a um regime jurídico administrativo, que se sobrepõe ao regime de direito comum normalmente aplicável às empresas privadas (direito civil, direito comercial, direito fiscal, etc.). Podemos afirmar que a determinação, em cada situação, do regime aplicável, se faz segundo uma lógica de relação normativa de generalidade/especialidade: aplica-se o regime de direito privado em tudo quanto não seja contrário às regras especiais de Direito Administrativo estabelecidas propositadamente por lei para as sociedades de interesse coletivo.

   A categoria das sociedades de interesse coletivo revestia bastante importância antes do 25 de Abril, porque era vista como uma das principais formas de intervenção económica do Estado no setor privado. Porém, a esmagadora maioria das empresas de interesse coletivo que existiam antes de 1974 foram nacionalizadas em 1975, tornando-se empresas públicas.
  Contudo, a crescente política de privatização de empresas públicas, verificada essencialmente a partir da década de 90 (muito por força da revisão constitucional de 1989), fez regressar à categoria das sociedades de interesse coletivo numerosas ex-empresas públicas. O renascimento deste paradigma é também influenciado pela reemersão da figura da concessão administrativa.

3.1.2 Regime jurídico
O regime jurídico das sociedades de interesse coletivo, no plano em que é definido pelo Direito Administrativo, é um regime jurídico duplo, pois apresenta:
a) privilégios especiais, de que as empresas privadas normalmente não gozam;
b) deveres ou sujeições especiais, a que, também, as empresas privadas geralmente não se acham submetidas.

De entre os privilégios mais comuns, os três mais importantes são:
a) Isenções fiscais;
b) Direito de requerer ao Estado a expropriação por utilidade pública de terrenos de que necessitem para se instalar;
c) Possibilidade de beneficiar, quanto às obras que empreendem, do regime jurídico das empreitadas de obras públicas.

Já na categoria dos deveres ou encargos especiais, é de referir as seguintes situações:
a) incompatibilidades e limitações de remuneração a que poderão ter de se sujeitar os corpos gerentes – aplicação do princípio de que o salário mensal de base não pode exceder o vencimento do Ministro;
b) ficam submetidas ao controlo financeiro do Estado;
c) o funcionamento destas empresas fica submetido à fiscalização efetuada por delegados do Governo.

3.2 Pessoas coletivas de utilidade pública
   Dado o caráter não lucrativo (non-profit organisations) necessário destas entidades, as pessoas coletivas de utilidade pública podem assumir a natureza de associações ou fundações. Estas entidades prosseguem fins não lucrativos de interesse geral, cooperando com a Administração central ou local, em termos de merecerem da parte desta a declaração de «utilidade pública».
   Temos como principais exemplo, nesta categoria, as Misericórdias, as associações de bombeiros voluntários, as creches e jardins de infância, os lares de idosos, as sopas dos pobres, a Fundação Gulbenkian, a Fundação Luso-Americana, etc.

    As pessoas coletivas de utilidade pública podem prosseguir interesses públicos de ordem geral, regional ou local, conforme o âmbito territorial de atuação.
   Quanto aos fins que prosseguem e ao regime jurídico a que estão sujeitas, devemos considerar três espécies:
a) Pessoas coletivas de mera utilidade pública, cujo conteúdo se determina residualmente, por ser composto por entidades que não integram nenhuma das duas restantes categorias – v.g., clubes desportivos, coletividades de cultura e recreio, associações científicas;
b) As instituições particulares de solidariedade social, são as que se constituem para dar expressão organizada ao dever moral de solidariedade e de justiça entre os indivíduos – v.g., Misericórdias;
c) As pessoas coletivas de utilidade pública administrativa, são as que, não obstante não serem instituições particulares de solidariedade social, prossigam fins de ordem moral e humanitária  – v.g., associações de bombeiros voluntários.

Existe uma graduação de intensidade na intervenção da Administração Pública nestas três espécies. Tal intervenção é:
- mínima, nas pessoas coletivas de mera utilidade pública - não envolve tutela administrativa nem controlo financeiro;
- intermédia, nas instituições particulares de solidariedade social - contém privilégios e limitações especiais, o direito ao apoio financeiro do Estado e a sujeição à tutela administrativa deste; e
- máxima, nas pessoas coletivas de utilidade pública administrativa – privilégios e restrições especiais, a sujeição à tutela administrativa e ao controlo financeiro do Estado.

   Esta graduação resulta da maior ou menor medida de interesse específico que a Administração Pública assuma em cada um dos casos, bem como da interferência com as funções assumidas por esta. No caso de interferência máxima (c), as entidades criadas pela iniciativa particular vêm suprir uma verdadeira omissão ou lacuna dos poderes públicos na prossecução dessa finalidade pública: daí o maior grau de intervenção imposto.

3.2.2 Regime jurídico
   Estão, também estas, sujeitas a um regime jurídico específico traçado pelo Direito Administrativo, definido essencialmente no D.L. n.º 460/77, de 7 de Novembro. O regime jurídico a que estão submetidas, tal como sucede com as sociedades de interesse coletivo, apresenta um caráter misto: uma combinação entre privilégios especiais e sujeições igualmente específicas. O seu regime apresenta como traços mais flagrantes:
- agir de acordo com o princípio da igualdade (art. 13º, CRP), nomeadamente não limitando o quadro dos seus associados ou beneficiários em função de critérios discriminatórios em razão da nacionalidade, sexo, religião, etc;
- dever de atuação com consciência da sua utilidade pública, aceitando cooperar com a Administração;
- gozam das isenções fiscais previstas nas leis tributárias;
- podem requerer a expropriação por utilidade pública dos terrenos de que careçam para prosseguir os seus fins estatutários;
- têm de enviar anualmente à Presidência do Conselho o relatório e contas do exercício, prestar à Administração Pública quaisquer informações solicitadas, e colaborar com o Estado e as autarquias locais na realização de atividades afins das suas.

4. Conclusão
   Existem agora condições de tomar posição, com base na análise feita supra ao regime específico destas entidades, sobre qual será a verdadeira natureza jurídica das sociedades de interesse coletivo e das pessoas coletivas de utilidade pública.
   A minha posição está de acordo com a tese clássica, no caso das sociedades, que afirma que estas entidades, por serem privadas, não fazem parte da Administração Pública: são colaboradoras da Administração, mas não seus elementos integrantes. Desde logo, por serem sujeitos de direito privado, a generalidade dos seus actos são actos jurídicos de direito privado (não são actos administrativos), o regime da responsabilidade civil aplicável a essas entidades é o que vem regulado no Código Civil, o pessoal dessas entidades não pertence à função pública (sendo-lhes aplicável o regime do contrato individual de trabalho) e, em último lugar, não cabem na previsão do art. 82º, nº 2, da CRP, que define quais as entidades que fazem parte do setor público.
   Em relação às pessoas coletivas de utilidade pública, são também entidades privadas, se bem que, neste caso, uma distinção é necessária de se fazer: deve aproveitar-se neste caso o conceito anglo-saxónico de «third sector» porque, ao lado do setor público e do setor privado lucrativo, que se dedica à economia, é indispensável sublinhar e valorizar a existência de um outro setor privado muito diferente – um setor não lucrativo, de fins altruístas, que se entrega a atividades humanitárias, culturais e de solidariedade social. Este setor afasta-se do setor público pelo seu espírito, e afasta-se do setor privado lucrativo pelos objetivos prosseguidos.

Bibliografia
- AMARAL, Diogo Freitas. Curso de Direito Administrativo, Volume I, 4ª edição, Almedina, 2015.
- GONÇALVES, Pedro Costa. Entidades Privadas com Poderes Públicos, Almedina, 2008.

Bruno Silva, nº 57244

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