1. Introdução
Esta publicação tem como objetivo dar a conhecer um
fenómeno de regulação de certas entidades
privadas pelo Direito Administrativo, não obstante o facto de não
integrarem a Administração Pública em sentido orgânico. Estas
entidades subordinam-se necessariamente a um regime parcialmente traçado pelo Direito
Administrativo porque a atividade que desenvolvem e os fins que prosseguem são
considerados de interesse geral e público.
2. Generalidades
Marcello
Caetano chamava a este tipo de entidades «pessoas coletivas de direito privado
e regime administrativo». Contudo, e adotando a perspetiva de Freitas do
Amaral, creio que essa não será a definição mais correta, por duas razões: por
um lado, o regime jurídico dessas entidades não é apenas administrativo,
resultando pelo contrário de uma conjugação entre o direito administrativo e o
direito privado; por outro lado, esta definição, ao focar-se na caraterização
do regime, acaba por não revelar que é a natureza destas entidades: é o regime
que resulta da natureza, e não o inverso, sendo por esse motivo importante
começar por aí.
Neste
sentido, na esteira da definição formulada pelo prof. Freitas do Amaral,
podemos definir estas «entidades
particulares de interesse público» enquanto pessoas coletivas que, por prosseguirem fins de interesses público, têm
o dever de cooperar com a Administração Pública e ficam sujeitas, em parte, a
um regime especial de Direito Administrativo.
Este
fenómeno tende a ocorrer por vários motivos:
a) porque a
Administração Pública não consegue arcar, por si só, com todas as tarefas que é necessário desenvolver em prol da coletividade, fazendo portanto apelo aos capitais particulares de forma a assegurar a sua efetiva realização – exercício privado de funções públicas;
b) por a lei
considerar que algumas coletividades privadas são de tal forma relevantes no
plano do interesse coletivo que, sem se pretender ir ao ponto de as
nacionalizar, decide contudo submetê-las a uma fiscalização permanente ou até
mesmo, no limite, a uma direta intervenção por parte da Administração Pública (v.g., designando um delegado do Governo
para as fiscalizar) – controlo público de
atividades privadas;
c) por fim,
casos em que a lei admite que em determinadas áreas de atividade sejam criadas
entidades privadas, por iniciativa particular, para se dedicarem à prossecução
de tarefas de interesse geral, numa base voluntária e altruísta, realizadas em
simultâneo com a Administração Públicas (v.g.,
instituições de assistência ou beneficiência) – coexistência colaborante entre atividades públicas e privadas;
As situações descritas não representam um modo de inserção orgânica de entidades privadas no setor
público, mas antes um modo de descentralização funcional do setor público, por
transferência de poderes próprios deste para a órbita do setor privado, ou por
autorização de desenvolvimento de uma atividade concorrencial pelos particulares
com a Administração no desempenho de certas tarefas comuns.
3. Espécies
As instituições particulares de interesse
público dividem-se em duas espécies distintas, a saber:
a) As sociedades de interesse coletivo;
b) As pessoas coletivas de utilidade pública.
3.1 Sociedades de interesse coletivo
Podemos
defini-las como empresas privadas de fim
lucrativo, que por exercerem poderes públicos ou estarem submetidas a uma
fiscalização especial da Administração Pública, ficam sujeitas a um regime
jurídico específico traçado pelo Direito Administrativo.
Temos aqui, como principais exemplos: concessionárias, empresas de economia mista, sociedades participadas pelo Estado, etc.
Temos aqui, como principais exemplos: concessionárias, empresas de economia mista, sociedades participadas pelo Estado, etc.
Por terem um
fim lucrativo, são sociedades, e nisto se distinguem das
pessoas coletivas de utilidade pública, que não o têm.
Como já
resultou do esquema inicialmente apresentado, estas entidades subordinam-se a
um regime jurídico específico, traçado pelo Direito administrativo, por um de
dois motivos: ou porque a empresa, embora privada, se dedica, estatutária ou
contratualmente, ao exercício de poderes públicos que a Administração transferiu
para ela; ou porque as circunstâncias obrigaram a Administração a colocar a
empresa privada num regime de fiscalização especial por motivos de interesse
público. Em ambos os casos, a lei sujeita este tipo de empresas privadas a um
regime jurídico administrativo, que se sobrepõe ao regime de direito comum
normalmente aplicável às empresas privadas (direito civil, direito comercial,
direito fiscal, etc.). Podemos afirmar que a determinação, em cada situação, do
regime aplicável, se faz segundo uma lógica de relação normativa de
generalidade/especialidade: aplica-se o regime de direito privado em tudo
quanto não seja contrário às regras especiais de Direito Administrativo
estabelecidas propositadamente por lei para as sociedades de interesse
coletivo.
A categoria
das sociedades de interesse coletivo revestia bastante importância antes do 25
de Abril, porque era vista como uma das principais formas de intervenção
económica do Estado no setor privado. Porém, a esmagadora maioria das empresas
de interesse coletivo que existiam antes de 1974 foram nacionalizadas em 1975,
tornando-se empresas públicas.
Contudo, a
crescente política de privatização de empresas públicas, verificada
essencialmente a partir da década de 90 (muito por força da revisão
constitucional de 1989), fez regressar à categoria das sociedades de interesse
coletivo numerosas ex-empresas públicas. O renascimento deste paradigma é também
influenciado pela reemersão da figura da concessão administrativa.
3.1.2 Regime jurídico
O regime
jurídico das sociedades de interesse coletivo, no plano em que é definido pelo
Direito Administrativo, é um regime jurídico duplo, pois apresenta:
a) privilégios especiais, de que as
empresas privadas normalmente não gozam;
b) deveres ou sujeições especiais, a que,
também, as empresas privadas geralmente não se acham submetidas.
De entre os privilégios mais comuns, os três mais
importantes são:
a) Isenções
fiscais;
b) Direito
de requerer ao Estado a expropriação por utilidade pública de terrenos de que
necessitem para se instalar;
c)
Possibilidade de beneficiar, quanto às obras que empreendem, do regime jurídico
das empreitadas de obras públicas.
Já na categoria
dos deveres ou encargos especiais, é de referir as seguintes situações:
a) incompatibilidades e limitações de remuneração a que poderão ter de se sujeitar
os corpos gerentes – aplicação do princípio de que o salário mensal de base não
pode exceder o vencimento do Ministro;
b) ficam
submetidas ao controlo financeiro do Estado;
c) o
funcionamento destas empresas fica submetido à fiscalização efetuada por delegados do Governo.
3.2 Pessoas coletivas de utilidade pública
Dado o
caráter não lucrativo (non-profit organisations) necessário
destas entidades, as pessoas coletivas de utilidade pública podem assumir a
natureza de associações ou fundações. Estas entidades prosseguem fins não lucrativos de interesse geral, cooperando com a
Administração central ou local, em termos de merecerem da parte desta a
declaração de «utilidade pública».
Temos como
principais exemplo, nesta categoria, as Misericórdias, as associações de
bombeiros voluntários, as creches e jardins de infância, os lares de idosos, as
sopas dos pobres, a Fundação Gulbenkian, a Fundação Luso-Americana, etc.
As pessoas
coletivas de utilidade pública podem prosseguir interesses públicos de ordem geral, regional ou local, conforme o âmbito territorial de atuação.
Quanto aos
fins que prosseguem e ao regime jurídico a que estão sujeitas, devemos
considerar três espécies:
a) Pessoas coletivas de mera utilidade pública,
cujo conteúdo se determina residualmente, por ser composto por entidades que
não integram nenhuma das duas restantes categorias – v.g., clubes desportivos, coletividades de cultura e recreio,
associações científicas;
b) As instituições particulares de
solidariedade social, são as que se constituem para dar expressão
organizada ao dever moral de solidariedade e de justiça entre os indivíduos – v.g., Misericórdias;
c) As pessoas coletivas de utilidade pública
administrativa, são as que, não obstante não serem instituições
particulares de solidariedade social, prossigam fins de ordem moral e
humanitária – v.g., associações de bombeiros voluntários.
Existe uma
graduação de intensidade na intervenção da Administração Pública nestas três espécies. Tal
intervenção é:
- mínima, nas pessoas coletivas de mera
utilidade pública - não envolve tutela administrativa nem controlo financeiro;
- intermédia, nas instituições particulares de
solidariedade social - contém privilégios e limitações especiais, o direito ao
apoio financeiro do Estado e a sujeição à tutela administrativa deste; e
- máxima, nas pessoas coletivas de
utilidade pública administrativa – privilégios e restrições especiais, a
sujeição à tutela administrativa e ao controlo financeiro do Estado.
Esta
graduação resulta da maior ou menor medida de interesse específico que a
Administração Pública assuma em cada um dos casos, bem como da interferência
com as funções assumidas por esta. No caso de interferência máxima (c), as entidades criadas pela
iniciativa particular vêm suprir uma verdadeira omissão ou lacuna dos poderes
públicos na prossecução dessa finalidade pública: daí o maior grau de
intervenção imposto.
3.2.2 Regime jurídico
Estão,
também estas, sujeitas a um regime jurídico específico traçado pelo Direito
Administrativo, definido essencialmente no D.L. n.º 460/77, de 7 de Novembro. O
regime jurídico a que estão submetidas, tal como sucede com as sociedades de
interesse coletivo, apresenta um caráter misto: uma combinação entre
privilégios especiais e sujeições igualmente específicas. O seu regime
apresenta como traços mais flagrantes:
- agir de
acordo com o princípio da igualdade (art. 13º, CRP), nomeadamente não limitando
o quadro dos seus associados ou beneficiários em função de critérios discriminatórios
em razão da nacionalidade, sexo, religião, etc;
- dever de
atuação com consciência da sua utilidade pública, aceitando cooperar com a
Administração;
- gozam das
isenções fiscais previstas nas leis tributárias;
- podem
requerer a expropriação por utilidade pública dos terrenos de que careçam para
prosseguir os seus fins estatutários;
- têm de
enviar anualmente à Presidência do Conselho o relatório e contas do exercício,
prestar à Administração Pública quaisquer informações solicitadas, e colaborar
com o Estado e as autarquias locais na realização de atividades afins das suas.
4. Conclusão
Existem agora
condições de tomar posição, com base na análise feita supra ao regime específico destas entidades, sobre qual será a verdadeira
natureza jurídica das sociedades de
interesse coletivo e das pessoas
coletivas de utilidade pública.
A minha posição está de acordo com a tese clássica, no caso das sociedades, que afirma que estas entidades, por serem privadas, não fazem parte da Administração Pública: são colaboradoras da Administração, mas não seus elementos integrantes. Desde logo, por serem sujeitos de direito privado, a generalidade dos seus actos são actos jurídicos de direito privado (não são actos administrativos), o regime da responsabilidade civil aplicável a essas entidades é o que vem regulado no Código Civil, o pessoal dessas entidades não pertence à função pública (sendo-lhes aplicável o regime do contrato individual de trabalho) e, em último lugar, não cabem na previsão do art. 82º, nº 2, da CRP, que define quais as entidades que fazem parte do setor público.
A minha posição está de acordo com a tese clássica, no caso das sociedades, que afirma que estas entidades, por serem privadas, não fazem parte da Administração Pública: são colaboradoras da Administração, mas não seus elementos integrantes. Desde logo, por serem sujeitos de direito privado, a generalidade dos seus actos são actos jurídicos de direito privado (não são actos administrativos), o regime da responsabilidade civil aplicável a essas entidades é o que vem regulado no Código Civil, o pessoal dessas entidades não pertence à função pública (sendo-lhes aplicável o regime do contrato individual de trabalho) e, em último lugar, não cabem na previsão do art. 82º, nº 2, da CRP, que define quais as entidades que fazem parte do setor público.
Em relação
às pessoas coletivas de utilidade pública,
são também entidades privadas, se bem que, neste caso, uma distinção é
necessária de se fazer: deve aproveitar-se neste caso o conceito anglo-saxónico de «third sector» porque, ao lado do setor público e do setor privado
lucrativo, que se dedica à economia, é indispensável sublinhar e valorizar a
existência de um outro setor privado muito diferente – um setor não lucrativo,
de fins altruístas, que se entrega a atividades humanitárias, culturais e de
solidariedade social. Este setor afasta-se do setor público pelo seu espírito,
e afasta-se do setor privado lucrativo pelos objetivos prosseguidos.
Bibliografia
- AMARAL, Diogo Freitas. Curso de Direito
Administrativo, Volume I, 4ª edição, Almedina, 2015.
- GONÇALVES, Pedro Costa. Entidades Privadas
com Poderes Públicos, Almedina, 2008.
Bruno Silva, nº 57244
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