domingo, 3 de dezembro de 2017

O Poder Discricionário

A Administração Pública encontra-se subordinada a um conjunto de regras e princípios orientadores da sua conduta. Não existem hoje áreas da Administração Pública isentas de vinculação ao Direito – todos os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei.

É importante salientar que de acordo com a visão liberal do século XIX do princípio da legalidade administrativa, a discricionariedade consistia na liberdade de atuar sempre que a lei não o proibia, porém, hoje em dia entende-se como a liberdade de escolher só quando e na medida que a lei o permitir. A discricionariedade não constitui uma exceção, mas afirmação do princípio da legalidade.

O poder discricionário é um poder-dever jurídico e, como tal, resulta necessariamente da lei. Contudo, é da própria competência que resulta a discricionariedade - o órgão está sempre vinculado a agir nos termos e dentro dos limites da competência que lhe é conferida. Em matéria administrativa, segue-se também o princípio da competência (art. 36º do CPA).

A lei não regula sempre do mesmo modo os atos a praticar pela Administração Pública: umas vezes pormenoriza, outras vezes não associa à situação jurídica por si definida uma consequência jurídica, antes habilita a Administração a determinar por si própria essa mesma consequência. Segundo o professor PAULO OTERO, há sempre um espaço de criação do Direito, o qual confere protagonismo à Administração.

A norma jurídica que concede a discricionariedade vem sempre associada a um interesse público que deverá ser aquele a ser prosseguido. O interesse público está interligado com o bem comum, que transcende o interesse de cada um de nós, pelo que a Administração aplica a vontade da coletividade, segundo o professor PAULO OTERO. Logo, é o interesse público que norteia a atividade da Administração Pública, de acordo com o professor MARCELO REBELO DE SOUSA.

Na maioria dos casos, a discricionariedade tem o seu fundamento não só em razões práticas, uma vez que o legislador reconhece que não lhe é possível prever antecipadamente todas as circunstâncias em que Administração vai ter de atuar, nem lhe é possível dispor acerca das melhores soluções para prosseguir o interesse público; como também em razões jurídicas, o poder discricionário visa assegurar o tratamento equitativo de casos individuais e fundamenta-se no princípio da separação de poderes. É a conjugação desta ordem de razões que justifica uma abertura no grau de densidade das normas, através do qual se confere à Administração competência para assegurar uma melhor adequação da decisão às circunstâncias concretas.

A discricionariedade resulta de uma opção do legislador. O legislador considerou que, para melhor prosseguir um certo interesse público, a Administração Pública deveria escolher um de vários interesses – aquele que, no entender do órgão decisor, seja o melhor a prosseguir. O legislador quis que este dispusesse de uma margem de liberdade de decisão, por forma a poder adaptar a sua decisão à diversidade das condições de vida.

Ora, a vinculação ao fim tem sido vista como a necessidade de confirmar o exercício da discricionariedade com o interesse público visado pela norma que a concede.
A vinculação e a discricionariedade são os dois elementos que qualquer decisão administrativa comporta, em proporções variáveis.

Segundo o professor DIOGO FREITAS DO AMARAL, não há atos totalmente vinculados, nem atos totalmente discricionários. Os atos administrativos são sempre o resultado de uma combinação, entre o exercício de poderes vinculados e de poderes discricionários. Os atos administrativos são vinculados em relação a certos aspetos e discricionários em relação a outros. Porém, existem certos aspetos no poder discricionário, tais como a competência e o fim do ato administrativo, que são sempre vinculados.

O professor VASCO PEREIRA DA SILVA considera que o poder discricionário é um poder vinculado, é um poder de realizar as opções do ordenamento jurídico. A Administração não tem poderes livres, está sempre submetida à lei. Apesar de ser concedida à Administração uma mais ampla margem de escolha, essa margem não significa que esta seja livre. Se a Administração violar os princípios a que está obrigada, essa violação é controlada pelo juiz. O juiz controla todos os aspetos vinculados do exercício do poder. E, por isso, a ideia de considerar que existem reservas de administração, que existem situações que não podem, em caso algum, ser controladas pelo juiz, é algo que não corresponde ao nosso ordenamento jurídico. A Constituição da República Portuguesa estabelece o princípio da legalidade, no seu artigo 266º, assim como o Código de Procedimento Administrativo, no seu artigo 3º, que regula toda a atuação administrativa, quer no quadro dos poderes vinculados, quer no quadro dos poderes discricionários. Todos os domínios da administração estão sujeitos ao controlo jurisdicional, pelo que não existem tais reservas. Esse controlo pode ser diferenciado, mais intenso no quadro dos poderes vinculados e menos intenso no dos poderes discricionários, mas abrange todos os poderes.

De acordo com o professor DIOGO FREITAS DO AMARAL, para haver discricionariedade é necessário que a lei atribua à Administração o poder de escolha entre várias alternativas diferentes de decisão, quer estas sejam contraditoriamente opostas (como conceder ou não uma autorização) ou estejam numa relação disjuntiva (como a nomeação de um funcionário para um determinado posto de uma lista nominativa de cinco). O órgão administrativo é obrigado a encontrar a melhor solução para o interesse público, o que demonstra que o poder discricionário não é um poder livre, dentro dos limites da lei, mas um poder jurídico, equivalendo à obrigação de escolher a solução mais acertada e não apenas a uma livre escolha entre várias soluções legalmente possíveis. A decisão administrativa tem de ser racional e ponderada, não deve ser fruto de um capricho ou emoção. A execução das leis (seja pelo funcionário público, seja pelo juiz) envolve uma certa criação por parte do aplicador na definição da regra de decisão no caso concreto.

Os tribunais administrativos não podem anular uma decisão da Administração com o fundamento de que tal decisão não é tecnicamente a mais acertada, nem podem substituir as decisões tomadas por outras que lhes parecem mais convenientes na prossecução do interesse público. Não há controlo jurisdicional de mérito - controlo com base numa ideia de conveniência, oportunidade e eficiência da conduta adotada, ou seja, a adequação do interesse publico específico e a necessidade de harmonização deste com os demais interesses públicos eventualmente afetados pelo ato. Salvo num caso limite: o de uma criação administrativa tomada com base em erro manifesto, ou seja, com base em situações de desrespeito pelo princípio da proporcionalidade, na sua vertente de adequação. Nesse caso, entende-se que a Administração excede os seus poderes e sai do campo de discricionariedade para entrar no de ilegalidade, motivo pelo qual o tribunal administrativo pode anular a decisão tomada pela Administração. Se a Administração desrespeitar a vinculação a que está adstrita, a ordem jurídica tem três respostas possíveis a dar: inconstitucionalidade (consubstanciando uma violação direta e imediata de normas da Constituição), ilegalidade direta ou indireta (violação de norma ordinária) ou ilicitude (violação de uma conduta administrativa de forma intencional e consciente).

O que se entende como discricionário num ato da administração? Não só o momento de prática do ato, em que a Administração poderá ter a faculdade de praticar o ato agora ou mais tarde, conforme entender; como a decisão de praticar ou não certo ato administrativo, que pode ser um aspeto discricionário; a determinação de factos e interesses relevantes para a decisão, mediante avaliações próprias da situação concreta; a determinação do conteúdo concreto da decisão a tomar; a forma a adotar para o ato administrativo; as formalidades na preparação ou prática do ato administrativo; a fundamentação ou não da decisão, visto que nem sempre a lei impor a fundamentação do ato administrativo; e a faculdade de apor ou não no ato administrativo condições, termos, modos e outras cláusulas acessórias.

A discricionariedade é uma escolha parametrizada, ou seja, tem de ser feita dentro de certos parâmetros, de acordo com o professor JOÃO CAUPERS. Pode ser limitada, nomeadamente por limites internos, como o fim visado pela norma que a confere, mas também pelo princípio da prossecução do interesse público (art. 4º do CPA); pelo princípio da legalidade (art. 266º da CRP e art. 3º do CPA), uma vez que a Administração Pública existe para prosseguir o interesse público, em obediência à lei; pelo dever de boa administração (art. 5º do CPA), isto é, o dever de a Administração prosseguir o bem comum da forma mais eficiente possível; o princípio da imparcialidade administrativa (art. 266°/2 da CRP e art. 9º do CPA), que impõe a igualdade de tratamento, devendo a Administração ponderar os interesses públicos envolvidos na decisão antes da adoção de um destes na solução do caso concreto; o princípio da proporcionalidade (art. 7º do CPA), através do qual a Administração deve usar os meios adequados para a prossecução dos interesses públicos, de forma equilibrada; pela sua própria autovinculação, ou seja, a Administração Pública pode exercer o seu poder mediante ponderação do caso concreto ou exercê-lo com base numa previsão ou experiência já sedimentada, as quais ela própria obedecerá para eventuais futuros casos, ao vincular-se a uma determinada norma, a Administração está obrigada a cumpri-la, sob pena de ilegalidade. São igualmente relevantes o princípio da boa-fé (art. 10º do CPA) e o princípio da proteção da confiança dos particulares, uma vez que reforçam o respeito pelos direitos e interesses legítimos dos interessados e supõem a valoração da conduta administrativa tendo em conta os valores do ordenamento jurídico, como os valores constantes dos princípios da justiça e da igualdade.
A boa administração implica que as próprias escolhas discricionárias da Administração sejam controladas pelos tribunais, quando não são equitativas, quando não correspondem ao procedimento adequado.


BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo, II, 3ª edição, Almedina, 2016
ANDRADE, Vieira, Lições de Direito Administrativo, 2ª edição, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2011
CAUPERS, João, Introdução ao Direito Administrativo, 5ª edição, Âncora Editora, Lisboa, 2000
CORREIA, Sérvulo, Legalidade e Autonomia contratual no Contrato Administrativo, Lisboa, 1987
OTERO, Paulo, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina, Coimbra, 2003
OTERO, Paulo, Manual de Direito Administrativo, I, Almedina, Coimbra, 2013
PEREIRA DA SILVA, Vasco, Aulas teóricas de Direito Administrativo I
REBELO DE SOUSA, Marcelo, Lições de Direito Administrativo, I, 2ª edição, Pedro Ferreira Editor, Lisboa, 1995
REBELO DE SOUSA, Marcelo; MATOS, André Salgado, 
Direito Administrativo Geral, I, 2ª edição, Dom Quixote, Lisboa, 2006

LEGISLAÇÃO
Constituição da República Portuguesa
Código do Procedimento Administrativo


Joana Cardoso, subturma 10, nº 57075

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