A autovinculação da administração através de regras gerais e abstratas, no âmbito dos poderes discricionários
Será legalmente admissível que um órgão detentor de um poder
discricionário para decidir em determinada matéria limite esse poder, fixando,
para o futuro, os termos em que vai exercê-lo?
Exemplo: A lei x concede ao órgão y um
poder discricionário para atribuir um subsídio a empresas exportadoras de
laticínios. O órgão y cria uma regra
geral e abstrata com o seguinte teor: “o subsídio a atribuir será sempre concedido
a empresas exportadoras de queijo e sempre indeferido a empresas exportadoras
dos restantes laticínios”.
A análise desta questão implica, em primeiro lugar, a explicação sumária do que
se entende por poder discricionário. A discricionariedade consiste num espaço
de liberdade conferido por lei à Administração para que esta escolha, entre
várias alternativas de atuação admissíveis, aquela que lhe parece mais adequada
à prossecução do interesse público com respeito pelos direitos fundamentais dos
particulares.
A Administração pode exercer o seu
poder discricionário de duas formas: ou decide, caso a caso, qual a solução que
mais adequadamente prossegue o interesse público, com respeito pelos direitos fundamentais
dos particulares, ou elabora um critério ao qual ela própria obedecerá na
apreciação de todos os casos. Seja qual for a forma pela qual a Administração
define este critério, a ideia subjacente é sempre a de que há uma definição
prévia do modo como vai ser exercido o poder discricionário. Assim, embora
tivesse, nos termos da lei, um poder discricionário, a Administração prefere
autovincular-se.
As opiniões doutrinárias são diversas
quanto à questão de saber se um órgão administrativo pode ou não criar uma regra que
limite o exercício da sua discricionariedade.
Para alguns autores isto não é
admissível, na medida em que o poder discricionário atribuído por lei visa a
satisfação de um objetivo: a ponderação dos interesses subjacentes a um dado
caso concreto. Se a lei que atribui o poder discricionário tinha como função a
obrigatoriedade de apreciação do caso concreto, então a criação de uma norma
geral e abstrata é violação da lei.
Segundo o Professor Gonçalves Pereira, se a administração define antecipadamente a sua posição para casos semelhantes
está a recusar-se a exercer o poder discricionário. O ato daí consequente será,
por isso, inválido. Também Osvaldo Gomes é da opinião segundo a qual o ato
praticado ao abrigo de uma norma reguladora do exercício da discricionariedade
é inválido.
Outros autores têm vindo a considerar
que os órgãos administrativos podem limitar o seu poder discricionário através
da criação de regras gerais e abstratas que disponham sobre os seus atos
futuros. De facto, se determinado órgão administrativo tem poder discricionário
de decisão, também tem o poder de dar a conhecer antecipadamente o sentido da
sua decisão.
Os defensores desta posição
consideram que não tem lógica impor a impossibilidade de se formular uma regra
geral e abstrata pois mesmo que assim fosse o órgão administrativo responsável
pela decisão poderia na mesma atuar segundo essa regra sem a exteriorizar.
No sentido da admissibilidade da
autovinculação por via de um critério geral e abstrato estão, designadamente,
os Professores Marcelo Rebelo de Sousa, André Salgado e Freitas do Amaral. Vejamos
de perto as suas considerações.
De acordo com o Professor Freitas do
Amaral, a Administração poderá elaborar, no âmbito da discricionariedade,
normas genéricas, enunciando critérios a que ela própria obedecerá na decisão de casos
futuros. Na sua ótica, esta autovinculação
obriga a Administração de tal modo que, se esta praticar um ato que contrarie a
regra que ela própria elaborou, comete uma ilegalidade.
Mas isto não significa que a
Administração deva ficar impedida de fundamentadamente mudar o critério na
apreciação de casos semelhantes. Tratando-se o interesse público de um
interesse variável, “não seria razoável
que a Administração ficasse para sempre amarrada de pés e de mãos a critérios
genéricos de decisão que um dia foram acertados mas depois se tornaram
anacrónicos”.
O que a Administração tem, é o dever
de fundamentar os atos administrativos. Dever este que o Código de Procedimento
Administrativo (CPA) prevê no seu artigo 152º/1, alínea d). A mudança do critério administrativo, obriga apenas à
correspondente fundamentação específica da sua razão de ser. Se a derrogação da
regra de autovinculação for devidamente fundamentada não existem impedimentos a
que a Administração decida de modo diferente casos semelhantes.
O Professor adverte, contundo, para
os casos em que, por via interpretativa, se apure que a intenção da lei era a de
que a administração decidisse por via de uma ponderação casuística. Nestes casos,
a autovinculação é ilegal.
Segundo os Professores Marcelo Rebelo
de Sousa e André Salgado, a autovinculação apresenta, alguns inconvenientes. Em
primeiro lugar, os Professores consideram que é posto em causa o princípio da
legalidade: “ao envolver renúncia ao exercício individual e concreto da margem
de decisão, a autovinculação violaria a lei que atribuiu determinado poder à
Administração para ser exercido ao abrigo daquela margem”. Em segundo lugar, a
autovinculação poderia por em causa o princípio da igualdade, ao petrificar
através de critérios gerais e abstratos, aquilo que a lei queria que fosse
ponderado no caso concreto (poderia por em risco o tratamento igual de
situações que deveriam ser tratadas de modo diverso).
Assim sendo, os Professores entendem
que a autovinculação só pode conciliar-se com os princípios da legalidade e da
igualdade se não for imutável, isto é, se os critérios gerais puderem ser
revistos sempre que necessário. Por outro lado, a autovinculação não dispensa o
decisor administrativo de averiguar se no caso concreto existem circunstâncias
que imponham diferente ponderação de interesses envolvidos.
No que respeita à forma e aos efeitos
que assumem as regras de autovinculação, a doutrina tem apresentado várias propostas.
Para o Professor Freitas do Amaral, estas
normas podem ter a natureza de regulamentos ou podem ser normas genéricas de
qualquer outro tipo.
No entendimento dos Professores Marcelo
Rebelo de Sousa e André Salgado, tratando-se de regras de conduta a ser
aplicadas a uma pluralidade interminável de situações, estão em causa de regulamentos
administrativos, qualificáveis como verdadeiras instruções.
Contudo, a possibilidade de serem
derrogados no caso concreto determina que tais regulamentos não são dotados de
eficácia externa. Em sentido contrário do que pensava o Professor Freitas do
Amaral, os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado, consideram que
não se tratam de verdadeiras fontes de Direito e que a sua violação não implica
a ilegalidade da conduta administrativa, mas apenas ilegalidade interna da
conduta do subalterno para efeitos de responsabilidade disciplinar.
Para os Professores Marcelo Rebelo de
Sousa e André Salgado, e no seguimento dos argumentos que apresentaram, não
existe dever de publicitação dos critérios de autovinculação. Ainda assim, a
inexistência de um dever de publicitação das instruções de autovinculação não
significa que elas sejam secretas, pelo que a sua existência deve ser revelada
a quem dela inquirir, por força do direito fundamental à informação (previsto
nos artigos 268º/1 da CRP, e 82º a 85º do CPA); e, em geral, do princípio da
colaboração da Administração com os particulares (previsto no artigo 11º do
CPA).
Alguma doutrina, nomeadamente o
Professor João Tiago Silveira, apresenta a figura das “diretivas administrativas”.
A diretiva é a norma geral e abstrata, suscetível de ser derrogada no caso
concreto se as particularidades deste assim o exigissem. Trata-se de um
preceito inserido na autonomia do órgão administrativo mas que pode ser
autonomamente violado, gerando, contudo, um dever de obediência por parte dos
subalternos.
Há que referir que os Professores Marcelo
Rebelo de Sousa e André Salgado deixam uma nota relativa à importância do
princípio da tutela da confiança nos casos de autovinculação por via de regras
gerais e abstratas. Se as instruções de autovinculação não têm eficácia externa,
então, nestes casos, o parâmetro da legalidade da conduta administrativa será o
próprio princípio da tutela da confiança.
Também o Supremo Tribunal
Administrativo tem vindo a entender que os critérios de autovinculação não estabelecem
limites absolutos ao exercício da competência em causa (acórdão 29/22/1995). O
STA tem permitido que o decisor administrativo formule regras neste sentido mas
afirma que essas regras não o vinculam. O órgão administrativo permanece assim
livre para decidir o caso no âmbito do poder discricionário que lhe compete.
A meu ver, a existência de um critério geral e abstrato no exercício do poder discricionário
apresenta algumas vantagens, entre as quais: a minoração da incerteza, imprevisibilidade
e insegurança; a redução da potencialidade de introdução de desigualdades, que sempre
decorre da existência de uma margem de decisão; a desburocratização; a
simplificação e a maior celeridade da atuação administrativa.
Todavia, existem limites à
autovinculação, que são os já enunciados pelos diversos autores a que fiz
referência. Esta não é admissível nos casos em que a lei queira que a administração
exerça casuisticamente o seu poder discricionário; nem é admissível se a
administração não puder alterar o critério previamente adotado. Por fim, a existência
de uma regra geral e abstrata não dispensa a necessidade de apreciação dos circunstancialismos
do caso concreto.
Bibliografia utilizada
- Rebelo de Sousa, Marcelo e Salgado de Matos, André, Direito Administrativo Geral I, 3ª Edição, Dom Quixote, 2004, páginas 191 a 194;
- Amaral, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo II, Almedina, Coimbra, 2003, páginas 94 a 97;
- Duarte, David, Igualdade e Imparcialidade na autovinculação da Administração", Lisboa, 1992, páginas 79 a 85;
- Artigo sobre "Diretivas de autovinculação em poderes discricionários" do Professor João Tiago Silveira, disponível em: https://www.mlgts.pt/xms/files/Publicacoes/Artigos/2012/Directivas_Auto-Vinculacao_Poderes_Discricionarios.pdf;
Ana Catarina Fonseca Louro, aluna nº 57110 da subturma 10, turma B.
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