terça-feira, 27 de março de 2018


“A relação entre o poder discricionário da A.P e a concretização de conceitos indeterminados”

Numa primeira nota, cabe-nos estabelecer uma situação conceitual sobre que tipo de poder é o da discricionariedade da A.P.

Como sabemos a Administração está subordinada à lei pelo Principio da legalidade, Art.3º CPA, no entanto essa regulamentação por vezes é precisa, mas também é imprecisa. Isto significa que a lei não regula do mesmo modo os atos que a A.P exerce.

Em certos casos a lei esgota (quase) todos os aspetos da ação administrativa, pormenorizando ao máximo os ditames em que esta vai atuar. São chamados atos vinculados, porque o ato administrativo está totalmente sujeito ao que a lei dispõe para ele, sem ter a opção de escolha nessa atuação – O Ato administrativo é um ato vinculado.

Noutros casos a lei não esgota todos os aspetos da ação administrativa, deixando espaço para a Administração decidir, entre as escolhas existentes, a que melhor se adequa à prossecução do interesse público, (o principal objeto de atuação da A.P), na sua atuação. São chamados atos discricionários, porque a lei deixa uma margem de autonomia à A.P, porque não regula determinada situação nessa atuação administrativa, tendo neste caso a A.P que decidir tendo em conta a sua experiência de gestão pública. – O Ato administrativo é um ato discricionário.

Quando se fala em discricionariedade, podemos aludir a 4 tipos principais:
·      Discricionariedade de ação – liberdade da A.P em agir ou não agir desse modo
·   Discricionariedade de escolha  liberdade da A.P em escolher duas ou mais atuações possíveis definidas pela lei
·    Discricionariedade criativa – liberdade da A.P para criar uma atuação concreta dentro dos limites que a lei lhe confere ao caso concreto aplicáveis
·     A cumulação dos 3 tipos de discricionariedade  a junção da discricionariedade de ação, de escolha e criativa

Será mais evidente com exemplos reais:
- Art.145º/3 CPA: “O autor da revogação pode, no próprio ato, atribuir-lhe (OU NÃO) eficácia retroativa” – Discricionariedade de ação, porque a administração pode agir ou não agir desse modo em relação ao ato administrativo;

- Art.100º/2 CPA: “O órgão instrutor decide, em cada caso, se a audiência dos interessados é escrita ou oral” – Discricionariedade de escolha, pois permite à administração escolher qual das duas opções, (ou mais), dadas pela lei prefere proceder;

- Art.157º/1 CPA: “Em caso de execução para prestação de facto fungível, a administração notifica o obrigado para que proceda à prática do ato devido, fixando um prazo razoável para o seu cumprimento” – Discricionariedade criativa, porque é atribuída à administração a liberdade de criar um prazo (embora razoável) para o cumprimento do ato devido;

- Art.174º/2 CPA: “O órgão competente para decidir o recurso pode, se for caso disso, anular, no todo ou em parte, o procedimento administrativo e determinar a realização de nova instrução ou de diligencias complementares” – Aqui temos a cumulação dos 3 tipos de discricionariedade, de ação, de escolha e criativa:
ü  O poder de anular ou não o procedimento é uma discricionariedade de ação, pois pode o órgão competente querer agir ou não nesse sentido
ü  O poder de anular no todo ou em parte é uma discricionariedade de escolha, porque o órgão competente pode aqui escolher entre 2 opções, assim como o poder de escolher entre realizar nova instrução ou de realizar diligencias complementares
ü  O poder de realizar diligencias complementares é uma discricionariedade criativa porque permite ao órgão competente criar um critério que complemente o procedimento

Importa, no entanto, perceber que os atos não são totalmente vinculados nem totalmente discricionários. Quase todos os atos são a combinação destas duas formas típicas pela qual a lei delineia a atividade da administração.

Importa ainda referir que o processo de discricionariedade que a A.P faz na sua atividade administrativa tem de ser feito de um certo modo:
1.       A A.P tem de perceber se realmente está vinculada à lei ou se existe espaço para que a sua atuação seja “autonomamente” escolhida por si
2.    A A.P tem de partir da situação concreta para adequar a sua atuação nas possíveis escolhas conferidas pela lei
3.       A A.P tem de testar essa atuação que escolheu tendo em conta a situação concreta e a sua normal ou habitual relevância em relação à prossecução do interesse público

É um raciocínio que a A.P faz de “juízos de prognose”, ou seja, esta tem de adequar a sua liberdade de escolha de atuação em todos os diferentes casos concretos que se depara com a realidade mutatória da sociedade em que se insere, de modo a escolher em consonância com o atual interesse público.

Como nos dizia Hartmut Maurer o “poder discricionário e conceito indeterminado formam seguramente o domínio mais controverso do Direito administrativo” e é neste sentido que pretendemos continuar a nossa exploração sobre o poder discricionário.

Será a interpretação de conceitos indeterminados uma atividade vinculada ou discricionária?

É verdade que quando se procede à interpretação da lei temos de ter em conta a vontade do legislador, o mesmo é dizer que neste aspeto a administração está vinculada e obrigada a descobrir o verdadeiro significado destes conceitos decorrentes da vontade da lei e por isso não dispõe de um poder discricionário e há espaço até para que os tribunais possam controlar essa vinculação, procedendo também à determinação desse conceito posteriormente.

Mas, o prof. Freitas Do Amaral explica que os conceitos indeterminados não têm todos a mesma denotação e apresentam “liberdades de conceituar” diferentes, ou seja, por um lado existem conceitos indeterminados que necessitam apenas de ser sujeitos a operações de interpretação da lei (Conceitos descritivos como denomina ENGISCH e Rogério Soares entende-os como conceitos-classificatórios), por outro lado existem conceitos indeterminados que funcionam claramente como um utensilio que a lei utiliza para atribuir à administração discricionariedade.

Vejamos então estas duas hipóteses de concretizar conceitos indeterminados:
Ø  São conceitos legais cuja indeterminação apenas se resume a problemas de linguagem e por isso podem ser concretizados através de “raciocínios teorético-discursivos”, ou seja, é através da interpretação da lei que a A.P terá de conceituar, aplicando ou conhecimentos jurídicos ou bases de experiências comuns.
Como neste caso a A.P está vinculada à lei e não existe espaço para poder exercer qualquer tipo de discricionariedade nessa conceitualização, os tribunais podem intervir posteriormente para avaliar a decisão administrativa, anulando-a ou não conforme fosse a sua escolha se estivessem no lugar da A.P.

Ø  São conceitos legais cuja indeterminação precisa de uma concretização valorativa por parte do órgão competente administrativo.
No entanto, existem casos e casos e por isso a valoração por vezes deve ser objetiva e noutras vezes subjetiva:

- A valoração objetiva acontece quando a lei não pretende que a A.P concretize esses conceitos de um modo pessoal, ou seja, pretende-se que aluda ao que é normalmente aceite como eticamente válido na sua ordem jurídica e estadual, tendo em conta as conceções morais dominantes.
Nestes casos a A.P está sujeita á fiscalização judicial;

- A valoração subjetiva acontece quando a lei entende que é necessário aludir a essa concretização de conceitos tendo a A.P como base a sua experiencia e convicções para a melhor prossecução do interesse público.
Aqui, por se entender ser uma atividade criadora de Direito pelo órgão competente administrativo por vontade do legislador, o tribunal não detém o controlo desse ato, mas pode sempre verificar se a atuação da A.P se adequa ao que foi imposto pela lei. Neste caso o tribunal não pode anular o ato administrativo porque se trata de um exercício de atuação discricionária, ou seja, foi assim que a lei o previu e se o tribunal não o respeitar está a pôr em causa o Principio da separação de poderes, pois estaria também a exercer a função administrativa juntamente com a A.P.

Já os profs. Marcelo rebelo de sousa e André Salgado falam da concretização de conceitos indeterminados a propósito da “margem de livre apreciação” que a A.P que também lhe é atribuída por lei, mas que se distingue do poder de discricionariedade que esta também pode ter, porque no primeiro caso o que a mesma tem é a liberdade de apreciar as situações de facto que vão consubstanciar as suas decisões e no segundo caso é uma liberdade de escolha entre as várias hipóteses que a lei lhe submete e por isso juridicamente admissíveis.

Claro que nem todos os conceitos por determinar estão sujeitos a que a A.P tenha uma margem de livre apreciação para que sejam concretizáveis. É por isso necessário encontrar um critério que distinga as situações onde essa margem de livre apreciação é necessária das que não o é.

O. Bachof, o autor que inicialmente formulou a teoria da margem de livre apreciação não apresentou uma resposta conclusiva para este problema, já W. Schmidt, que influenciou parte da doutrina portuguesa como Sérvulo Correia, distingue dois tipos de conceitos, os conceitos classificatórios que seriam aqueles que apenas são indeterminados na sua expressão linguística e por isso seriam concretizáveis por raciocínios logico-dedutivos, por uma interpretação da lei e da situação de facto, não tendo aqui lugar a A.P para uma margem de livre apreciação da norma; Por outro lado os conceitos tipológicos seriam aqueles que apresentam tal indeterminação e abertura para “albergar” tantas possibilidades conceituais que a A.P teria de utilizar a sua margem livre de apreciação para apreciar e concretizar o conceito, mas tendo em conta o caso concreto e a prossecução do interesse público, os já referidos juízos de prognose.

Assim, temos de respeitar 3 aspetos para poder haver essa margem de livre apreciação pela A.P na concretização de conceitos indeterminados:
1)      A margem de livre apreciação só ocorre em conceitos tipológicos, ou seja, aqueles que apresentam uma abertura demasiado grande de falta de exatidão, ao contrário dos conceitos classificatórios que apenas se prendem com um conflito linguístico que pode ser facilmente resolvido
2)      A margem de livre apreciação apenas tem lugar quando a ação jurisdicional dos tribunais (de anular ou não esse ato) implicasse ir contra o Principio da separação de poderes, porque também estaria a exercer a função administrativa e por isso haveria uma usurpação do poder administrativo
3)      Fazer uma ponderação entre a separação de poderes e os direitos fundamentais dos particulares que poderão ser lesados com a decisão administrativa

Se os últimos aspetos prevalecerem sobre o primeiro, então podemos ver se existe necessidade para haver o controlo jurisdicional do ato administrativo e se sim não se trata de uma margem de livre apreciação da A.P.

Em síntese, podemos concluir que o poder de discricionariedade que a administração tem atua de diferentes formas em relação aos diferentes casos concretos e que nem todos os conceitos indeterminados carecem de um exercício autónomo da A.P para a sua concretização, porque por vezes o legislador assim não o pretendeu, mas existem casos em que é necessária essa atuação autónoma e que podemos entende-la como um dos planos de incidência do poder discricionário da A.P.



Matilde Ribeiro | Nº 56851

Bibliografia:

Rebelo de Sousa, Marcelo e Salgado de Matos, André - Direito Administrativo em geral - Tomo I -Introdução e principios fundamentais, 2ª Edição - pag.105 a 111.
Amaral, Diogo Freitas do - Curso de Direito Administrativo - Vol. II, Almedina, Coimbra, 2003 -pag.184 a 190.
García, Emerson - Discricionariedade administrativa, 2ª edição, 2013 - pag.23 a 28.

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