terça-feira, 27 de março de 2018


Princípio da Discricionariedade. Conceito e Divergência 

Toda a atuação da Administração Pública se encontra subordinada à lei e ao Direito, conforme decorre do princípio da legalidade, consagrado no artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo. Porém, tal como ocorre noutras áreas do Direito, verifica-se impossível ao legislador prever antecipadamente todas as circunstâncias em que a Administração vai ter de atuar. Assim sendo, há casos em que a lei regula o exercício dos poderes administrativos com grande minúcia e especificidade, enquanto noutros, remete a decisão para o órgão administrativo.
Nuns, a regulamentação legal da atividade administrativa é precisa, havendo, portanto, uma vinculação da Administração nesses termos legalmente previstos; noutros essa regulamentação é imprecisa, podendo identificar-se uma discricionariedade no âmbito da atividade administrativa.

Para melhor compreender a razão de ser da discricionariedade é importante conhecer brevemente a sua evolução histórica.

            No Estado Absoluto não existia discricionariedade, havia  ilimitação jurídica do poder político do Estado. É só com o Estado Liberal que surge a legalidade como limite exterior à atividade administrativa mas existia uma discricionariedade muito ampla pois a Administração Pública era livre de fazer tudo quanto a lei não a interdisse.
No séc XX, acentua-se a previsão legal dos limites à atividade administrativa, com vários tipos de modalidades de vícios do ato administrativo como a usurpação de poder e o desvio de poder, a incompetência, a violação da lei e o vício de forma.
Existe portante a uma importante alteração de perspetiva, a discricionariedade deixa de ser a liberdade de atuar sempre que a lei não o proibir, para passar a ser a liberdade de escolher só quando e na medida em que a lei o permita.

Para haver discricionariedade é necessário que a lei atribua à Administração o poder de escolha entre várias alternativas diferentes de decisão. No entanto essa escolha não é livre, é condicionada por um conjunto de fatores onde se integram, não apenas, a competência do órgão decisório e o fim legal, mas também os princípios e regras gerais que vinculam a Administração Pública.
Para Freitas do Amaral“ o poder discricionário não é um poder livre, dentro dos limites da lei, mas um poder jurídico delimitado pela lei”.
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Limites

O poder discricionário pode ser limitado através do estabelecimento de limites legais ou através da autovinculação.
Os limites legais são aqueles que resultam da própria lei.
No caso dos limites decorrentes da autovinculação, a Administração pode exercer os seus poderes caso a caso, adotando em cada um a solução que lhe parecer mais ajustada ao interesse público. A Administração reserva-se o direito de apreciar casuisticamente as circunstâncias e os condicionalismos de cada caso concreto. A Administração pode proceder de outra maneira, na base de uma previsão do que poderá acontecer, a Administração pode elaborar normas genéricas em que enuncie os critérios a que ela própria obedecerá na apreciação de cada caso futuro.
            Nestes casos, Administração embora tivesse um poder discricionário decidiu autovincular-se, e a autovinculação a que ela se submeteu obriga-a como lei. Se a Administração depois de se ter vinculado praticar um ato que contrarie as normas que ela própria elaborou, esse ato será ilegal. Apesar de esta estar vinculada às normas que ela própria elaborou, não fica absolutamente impedida de fundamentadamente mudar de critério na apreciação de casos semelhantes.

Ainda neste contexto da autovinculação importa esclarecer que esta não é ilimitada, isto é, pode haver casos em que a lei queira que a Administração exerça efetivamente caso a caso o seu poder de apreciação das circunstâncias concretas.

Controlos
 A atividade da Administração está sujeita a vários tipos de controlo:

·                     controlos de legalidade – onde se avalia se o comportamento da Administração se enquadra dentro das normas legais;
·                     controlos de mérito – onde se avalia o bem fundado das decisões da Administração
·                     controlos  administrativos
·                     controlos  jurisdicionais

 Os controlos administrativos são realizados por órgãos da Administração e os controlos jurisdicionais são efetuados pelos Tribunais.
O controlo de legalidade pode ser feito quer pelos Tribunais, quer pela própria Administração; o controlo de mérito só pode ser feito, em Portugal, pela Administração.
O mérito do ato administrativo compreende a ideia de justiça e a ideia de conveniência. De acordo com Freitas do Amaral, a justiça de um ato administrativo consiste na adequação desse ato à necessária harmonia entre o interesse público específico que ele deve prosseguir e os direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos dos particulares afetados pelo ato. A conveniência do ato é a adequação desse ato ao interesse público específico que justifica a sua prática e a harmonia entre esse  interesse e os demais interesses públicos afetados pelo ato.
O uso de poderes vinculados que tenham sido exercidos contra a lei é objeto dos controlos de legalidade. Já o uso de poderes discricionários que tenham sido exercidos de modo inconveniente é objeto dos controlos de mérito. Quando os poderes utilizados sejam em parte vinculados e em parte discricionários, o seu exercício ilegal é suscetível de controlo de legalidade; e o seu mau uso é suscetível de controlo de mérito.
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Divergência Doutrinária


A questão da discricionariedade está na base de um complexo e controverso debate de Direito Administrativo. No quadro da doutrina portuguesa, podemos distinguir, essencialmente, quatro posições fundamentais sobre deste tema:
             A construção clássica, defendida por Marcello Caetano, afirma que o poder discricionário é um poder à margem da lei, à margem do princípio da legalidade, o que significa que o poder discricionário não pode ser jurisdicionalmente controlado. Assim, no quadro desta teoria, olha-se para um ato administrativo, qualifica-se o mesmo como discricionário ou vinculado em função da existência ou não de “liberdade de decisão da administração”. O ato discricionário é da responsabilidade exclusiva da administração e não pode ser controlado pelo tribunal.
 A segunda construção é elaborada por Diogo Freitas do Amaral.  De modo a definir os conceitos de poderes vinculados e poderes discricionários, o Professor qualifica os atos administrativos como podendo ser de dois tipos: os atos vinculado ou atos discricionários.
O Professor afirma que os atos são vinculados quando praticados pela administração no exercício de poderes vinculados, e que são discricionários quando praticados no exercício de poderes discricionários. Os primeiros seriam atos que vinculariam por completo a Administração, através da lei. Nos segundos, a lei confere à Administração um poder de apreciação casuística, deixa em aberto esse mesmo comportamento e a Administração poderá efetuar opções diversas.
Nesta perspetiva o poder é vinculado quando a lei não remete para titular a escolha da solução concreta mais adequada e é discricionário quando esse titular possa e deva escolher a solução a adotar mais adequada à realização do interesse público conferido.

O Professor chama a atenção para o facto de não existirem, à partida, atos totalmente vinculados ou totalmente discricionários: quase todos os atos administrativos são vinculados a certos aspetos e discricionários em relação a outros.
Nos anos oitenta, surge uma outra posição, baseado numa no direito alemão, através da tese de doutoramento de Sérvulo Correia, apoiada por Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos.
O Professor Sérvulo defende a existência de uma discricionariedade no momento da decisão, aquilo a que chama margem de livre decisão, ou seja, um espaço de liberdade da atuação administrativa conferido por lei e limitado pelo bloco de legalidade.
Esta margem de livre decisão resulta da atribuição pela lei de uma liberdade à Administração na apreciação de situações de facto que dizem respeito aos pressupostos das suas decisões e não, expressamente, como sucede na discricionariedade, de uma liberdade de escolha entre várias alternativas de atuação juridicamente admissíveis.
Vasco Pereira da Silva discorda de tal aceção e de que a Administração possa ter liberdade. Segundo o Professor, a administração pratica sempre decisões jurídicas e decisões que concretizam o ordenamento jurídico no caso concreto e, portanto, são decisões que nunca são livres. O Professor não considera que exista alguma diferença entre a margem de livre decisão e a margem de livre apreciação: a questão que se coloca é exatamente a mesma, de uma escolha da administração segundo os mesmos critérios.
Para Vasco Pereira da Silva esta construção também não considera o momento de interpretação da norma. O Professor Regente considera que a Administração perante uma qualquer situação vai começar sempre por interpretar a norma e nessa interpretação ela faz escolhas. A interpretação da norma é uma tarefa de natureza discricionária, com elementos vinculados. 
A Administração pode ter margem de apreciação o leva a que possa haver discricionariedade também no momento da apreciação. Por último, pode haver discricionariedade quanto à decisão porque a administração, no final, pode ter várias soluções legalmente possíveis.

 Em suma, o poder discricionário, como todo o poder administrativo deriva da lei, isto é, só existe quando a lei o confere e na medida em que a lei o configura. O poder discricionário só pode ser exercido por aqueles a quem a lei o atribuir e para o fim com que a lei o confere, devendo ainda ser exercido em conformidade com certos princípios jurídicos de atuação

Bibliografia
Amaral, Diogo Freitas do; Curso de Direito Administrativo, vol. II, 3ª edição, Coimbra, 2016.
Caupers, João; Introdução ao Direito Administrativo; Âncora Editora, Lisboa, 2013

Rebelo de Sousa, Marcelo, Lições de Direito Administrativo, Volume I, LEX, 1999

Rebelo de Sousa, Marcelo Rebelo de; e Matos, André Salgado de; Direito Administrativo Geral, tomo III, 2.ª edição, Lisboa,  Publicações Dom Quixote, 2009.
Pereira da Silva, Vasco; Em Busca do Acto Administrativo Perdido; Almedina, Coimbra, 1996
Vasco Pereira da Silva, aulas teóricas de Direito Administrativo II

Inês Isabel Martins Amores da Silva
29879

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