Princípio da
Discricionariedade. Conceito e Divergência
Toda a atuação da Administração
Pública se encontra subordinada à lei e ao Direito, conforme decorre do
princípio da legalidade, consagrado no artigo 3.º do Código do Procedimento
Administrativo. Porém, tal como ocorre noutras áreas do Direito, verifica-se
impossível ao legislador prever antecipadamente todas as circunstâncias em que
a Administração vai ter de atuar. Assim sendo, há casos em que a lei regula o
exercício dos poderes administrativos com grande minúcia e especificidade,
enquanto noutros, remete a decisão para o órgão administrativo.
Nuns, a regulamentação legal da
atividade administrativa é precisa, havendo, portanto, uma vinculação da
Administração nesses termos legalmente previstos; noutros essa regulamentação é
imprecisa, podendo identificar-se uma discricionariedade no âmbito da atividade
administrativa.
Para melhor compreender a razão de
ser da discricionariedade é importante conhecer brevemente a sua evolução
histórica.
No Estado Absoluto não existia discricionariedade, havia ilimitação jurídica do poder político do Estado. É só com o Estado Liberal que surge a legalidade como limite exterior à atividade administrativa mas existia uma discricionariedade muito ampla pois a Administração Pública era livre de fazer tudo quanto a lei não a interdisse.
No séc XX, acentua-se a previsão legal dos limites à atividade administrativa, com vários tipos de modalidades de vícios do ato administrativo como a usurpação de poder e o desvio de poder, a incompetência, a violação da lei e o vício de forma.
Existe portante a uma importante alteração de perspetiva, a discricionariedade deixa de ser a liberdade de atuar sempre que a lei não o proibir, para passar a ser a liberdade de escolher só quando e na medida em que a lei o permita.
Para haver discricionariedade é
necessário que a lei atribua à Administração o poder de escolha entre várias
alternativas diferentes de decisão. No entanto essa escolha não é livre, é
condicionada por um conjunto de fatores onde se integram, não apenas, a
competência do órgão decisório e o fim legal, mas também os princípios e regras
gerais que vinculam a Administração Pública.
Para Freitas do Amaral“ o poder
discricionário não é um poder livre, dentro dos limites da lei, mas um poder
jurídico delimitado pela lei”.
.
Limites
O poder discricionário pode ser
limitado através do estabelecimento de limites legais ou através da
autovinculação.
Os limites legais são aqueles que
resultam da própria lei.
No caso dos limites decorrentes da
autovinculação, a Administração pode exercer os seus poderes caso a caso, adotando
em cada um a solução que lhe parecer mais ajustada ao interesse público. A Administração
reserva-se o direito de apreciar casuisticamente as circunstâncias e os
condicionalismos de cada caso concreto. A Administração pode proceder de outra
maneira, na base de uma previsão do que poderá acontecer, a Administração pode
elaborar normas genéricas em que enuncie os critérios a que ela própria
obedecerá na apreciação de cada caso futuro.
Nestes
casos, Administração embora tivesse um poder discricionário decidiu autovincular-se,
e a autovinculação a que ela se submeteu obriga-a como lei. Se a Administração
depois de se ter vinculado praticar um ato que contrarie as normas que ela
própria elaborou, esse ato será ilegal. Apesar de esta estar vinculada às
normas que ela própria elaborou, não fica absolutamente impedida de
fundamentadamente mudar de critério na apreciação de casos semelhantes.
Ainda neste contexto da
autovinculação importa esclarecer que esta não é ilimitada, isto é, pode haver
casos em que a lei queira que a Administração exerça efetivamente caso a caso o
seu poder de apreciação das circunstâncias concretas.
Controlos
A atividade da Administração
está sujeita a vários tipos de controlo:
·
controlos de
legalidade – onde se avalia se o comportamento da Administração se enquadra
dentro das normas legais;
·
controlos de
mérito – onde se avalia o bem fundado das decisões da Administração
·
controlos administrativos
·
controlos jurisdicionais
Os controlos administrativos são realizados
por órgãos da Administração e os controlos jurisdicionais são efetuados pelos
Tribunais.
O controlo de legalidade pode ser
feito quer pelos Tribunais, quer pela própria Administração; o controlo de
mérito só pode ser feito, em Portugal, pela Administração.
O mérito do ato administrativo
compreende a ideia de justiça e a ideia de conveniência. De acordo com Freitas
do Amaral, a justiça de um ato administrativo consiste na adequação desse ato à
necessária harmonia entre o interesse público específico que ele deve
prosseguir e os direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos dos
particulares afetados pelo ato. A conveniência do ato é a adequação desse ato
ao interesse público específico que justifica a sua prática e a harmonia entre
esse interesse e os demais interesses
públicos afetados pelo ato.
O uso de poderes vinculados que
tenham sido exercidos contra a lei é objeto dos controlos de legalidade. Já o
uso de poderes discricionários que tenham sido exercidos de modo inconveniente
é objeto dos controlos de mérito. Quando os poderes utilizados sejam em parte
vinculados e em parte discricionários, o seu exercício ilegal é suscetível de
controlo de legalidade; e o seu mau uso é suscetível de controlo de mérito.
.
Divergência Doutrinária
A questão da discricionariedade está na
base de um complexo e controverso debate de Direito Administrativo. No quadro
da doutrina portuguesa, podemos distinguir, essencialmente, quatro posições
fundamentais sobre deste tema:
A construção clássica, defendida por Marcello
Caetano, afirma que o poder discricionário é um poder à margem da lei, à margem
do princípio da legalidade, o que significa que o poder discricionário não pode
ser jurisdicionalmente controlado. Assim, no quadro desta teoria, olha-se para
um ato administrativo, qualifica-se o mesmo como discricionário ou vinculado em
função da existência ou não de “liberdade de decisão da administração”. O ato discricionário
é da responsabilidade exclusiva da administração e não pode ser controlado pelo
tribunal.
A
segunda construção é elaborada por Diogo Freitas do Amaral. De modo a
definir os conceitos de poderes vinculados e poderes discricionários, o Professor qualifica os atos
administrativos como podendo ser de dois tipos: os atos vinculado ou atos
discricionários.
O Professor afirma que os atos são
vinculados quando praticados pela administração no exercício de poderes
vinculados, e que são discricionários quando praticados no exercício de poderes
discricionários. Os primeiros
seriam atos que vinculariam por completo a Administração, através da lei. Nos
segundos, a lei confere à Administração um poder de apreciação casuística, deixa
em aberto esse mesmo comportamento e a Administração poderá efetuar opções
diversas.
Nesta perspetiva
o poder é vinculado quando a lei não remete para titular a escolha da solução
concreta mais adequada e é discricionário quando esse titular possa e deva
escolher a solução a adotar mais adequada à realização do interesse público
conferido.
O Professor chama a atenção para o facto
de não existirem, à partida, atos totalmente vinculados ou totalmente discricionários:
quase todos os atos administrativos são vinculados a certos aspetos e
discricionários em relação a outros.
Nos anos oitenta, surge uma outra
posição, baseado numa no direito alemão, através da tese de doutoramento de Sérvulo Correia, apoiada por Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos.
O Professor Sérvulo defende a existência
de uma discricionariedade no momento da decisão, aquilo a que chama margem de
livre decisão, ou seja, um espaço de liberdade da atuação administrativa
conferido por lei e limitado pelo bloco de legalidade.
Esta margem de livre decisão resulta da
atribuição pela lei de uma liberdade à Administração na apreciação de situações
de facto que dizem respeito aos pressupostos das suas decisões e não,
expressamente, como sucede na discricionariedade, de uma liberdade de escolha
entre várias alternativas de atuação juridicamente admissíveis.
Vasco Pereira da
Silva discorda de tal aceção e de que a Administração possa
ter liberdade. Segundo o Professor, a administração pratica sempre decisões
jurídicas e decisões que concretizam o ordenamento jurídico no caso concreto e,
portanto, são decisões que nunca são livres. O Professor não considera que
exista alguma diferença entre a margem de livre decisão e a margem de livre
apreciação: a questão que se coloca é exatamente a mesma, de uma escolha da
administração segundo os mesmos critérios.
Para Vasco Pereira da Silva esta
construção também não considera o momento de interpretação da norma. O Professor
Regente considera que a Administração perante uma qualquer situação vai começar
sempre por interpretar a norma e nessa interpretação ela faz escolhas. A
interpretação da norma é uma tarefa de natureza discricionária, com elementos
vinculados.
A Administração pode ter margem de
apreciação o leva a que possa haver discricionariedade também no momento da
apreciação. Por último, pode haver discricionariedade quanto à decisão porque a
administração, no final, pode ter várias soluções legalmente possíveis.
Em suma, o poder discricionário,
como todo o poder administrativo deriva da lei, isto é, só existe quando a lei
o confere e na medida em que a lei o configura. O poder discricionário só pode
ser exercido por aqueles a quem a lei o atribuir e para o fim com que a lei o
confere, devendo ainda ser exercido em conformidade com certos princípios
jurídicos de atuação
Bibliografia
Amaral, Diogo Freitas do; Curso de
Direito Administrativo, vol. II, 3ª edição, Coimbra, 2016.
Caupers,
João; Introdução ao Direito Administrativo; Âncora Editora, Lisboa, 2013
Rebelo de Sousa,
Marcelo, Lições de Direito Administrativo, Volume I, LEX, 1999
Rebelo de
Sousa, Marcelo Rebelo de; e Matos, André Salgado de; Direito Administrativo
Geral, tomo III, 2.ª edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2009.
Pereira da
Silva, Vasco; Em Busca do Acto Administrativo Perdido; Almedina, Coimbra, 1996
Vasco
Pereira da Silva, aulas teóricas de Direito Administrativo II
Inês Isabel Martins Amores da Silva
29879
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