A relação jurídica entre a Administração Pública e o cidadão tem evoluído fortemente em favor do último e o artigo 57.o do Código de Procedimento Administrativo (CPA) é um dos melhores exemplos dessa evolução. Neste artigo estão consagrados os acordos endoprocedimentais que não se encontravam consagrados na versão anterior do CPA, sendo assim uma das novidades incorporadas no novo Código.
De acordo com SÉRVULO CORREIA, a expressão “acordos endoprocedimentais”, mesmo antes da sua consagração no novo CPA, era já utilizada pela doutrina portuguesa com o objetivo de designar pactos celebrados no decurso de um procedimento administrativo. A doutrina indicava o artigo 179.o do anterior CPA como fundamento para a celebração deste tipo de acordos. Apesar de já serem validamente praticados nos limites da autonomia e da discricionariedade da Administração Pública, o novo CPA veio consagrar expressamente no artigo 57.o os acordos endoprocedimentais, visando assim alcançar uma maior eficiência, desburocratização, participatividade e celeridade da Administração Pública.
No preâmbulo do novo CPA está expresso que se quer “transformar profundamente o modo de funcionamento da Administração Pública nas suas relações com os cidadãos” e é com esse objetivo em vista que se introduz a consagração expressa dos acordos endoprocedimentais no CPA. A par da obrigatoriedade dos mesmos revestirem forma escrita, a sua introdução no novo Código representa não só o fim da ideia da sua fraca vinculatividade, como também um aumento de certeza e confiança jurídicas, tanto para o particular como para a Administração.
É, então, com a consagração destes acordos no CPA que se cria a possibilidade de o órgão administrativo decisor e os particulares acordarem quanto aos termos do procedimento administrativo, com efeito vinculativo. Os sujeitos da relação jurídica podem então convencionar termos do procedimento que caibam no âmbito da discricionariedade procedimental ou o próprio conteúdo da decisão a tomar, desde que dentro dos limites em que esta possibilidade é legalmente admitida.
Quanto à natureza jurídica dos acordos endoprocedimentais, a maioria da doutrina portuguesa caracteriza estes acordos como contratos, havendo, no entanto, posições divergentes que consideram que aqui ainda se está face a atos administrativos. SOFIA DAVID defende a visão de que acordos endoprocedimentais são contratos e JOANA DE SOUSA LOUREIRO define-os como “verdadeiros contratos celebrados entre a Administração e os administrados no decorrer do procedimento administrativo”.
JOANA DE SOUSA LOUREIRO aponta ainda várias vantagens à celebração deste tipo de acordos, tanto para a Administração como para os particulares, nomeadamente:
- A flexibilização do procedimento
Ao ser permitida a participação dos particulares interessados enquanto detentores de uma vontade constitutiva, que conjuntamente com a vontade da Administração gera um vínculo obrigacional, os acordos endoprocedimentais constituem um mecanismo de flexibilização do procedimento administrativo;
- A aplicação da melhor solução ao caso concreto
Uma decisão tomada através da concordância de vontades entre a Administração e o particular será sempre a melhor decisão possível para aquele caso, uma vez que atender à vontade do administrado proporciona que se encontre mais facilmente uma solução adequada aos interesses público e privado e, consequentemente, uma solução conciliadora;
- A diminuição da litigiosidade
É uma consequência direta da negociação do conteúdo do ato ou da definição consensual dos termos do procedimento.
Os dois primeiros números do artigo 57.o foram introduzidos no CPA exatamente como estavam no projeto final da Comissão de revisão do Código. O mesmo não aconteceu relativamente ao n.o 3, uma vez que o legislador acrescentou a qualificação de “discricionário” ao conteúdo do ato administrativo determinável através de contrato durante o procedimento.
Nos n.os 1 e 2 do referido artigo, é utilizada a expressão “acordos” (no n.o 1 fala-se em acordar), enquanto no n.o 3 o legislador optou pela expressão “celebrar contrato”. O motivo desta distinção reside na diferença entre as duas modalidades de acordos que se encontram consagradas no artigo 57.o.
De acordo com SÉRVULO CORREIA, nos n.os 1 e 2 encontra-se estipulada a categoria de acordos sobre termos do procedimento, os quais também se podem designar por acordos integrativos do procedimento ou acordos do trâmite procedimental. Estes acordos estabelecem uma ligação entre os artigos 56.o, onde está consagrado o princípio da adequação procedimental, e 57.o, uma vez que eles “constituem uma forma de exercício de discricionariedade de estruturação de procedimento, que o primeiro destes preceitos considera objeto do princípio de adequação procedimental”. A possibilidade de celebração destes acordos depende da delimitação dos interessados no procedimento (estipulados no artigo 65º do CPA), sendo que estes acordos são endoprocedimentais por só terem lugar no decurso do procedimento (o prefixo “endo” significa no interior de).
Relativamente aos acordos previstos no n.o 3, estes visam contratualizar, no todo ou em parte, o conteúdo do ato administrativo a praticar no termo do procedimento. Estes podem ser celebrados “durante o procedimento”, de acordo com o preceito já referido, e é deste enquadramento funcional que resulta a sua natureza procedimental. SÉRVULO CORREIA denota ainda que o negócio jurídico delineado no n.o 3 do artigo 57.o corresponde a uma figura “expressamente tipificada como contrato administrativo” no artigo 337.o, n.o 2, do Código dos Contratos Públicos e SOFIA DAVID aponta que a realidade referida na norma legal corresponde essencialmente a um contrato sobre o exercício de poderes públicos ou uma contratualização do poder administrativo.
JOANA DE SOUSA LOUREIRO distingue os tipos de acordos endoprocedimentais de forma um pouco distinta, analisando o artigo 57.o à luz de quatro características: a finalidade, a exigência de forma escrita, a vinculatividade e o objeto dos acordos endoprocedimentais.
Em relação à finalidade, da leitura conjugada dos n.os 1 e 3 retira-se que os acordos endoprocedimentais podem ter duas finalidades: “acordar termos do procedimento” (n.o 1) e “definir, parcial ou totalmente, o conteúdo do ato administrativo que vier a pôr fim ao procedimento em questão” (n.o 3).
Esta divisão foi realizada pelo legislador e a partir dela é possível classificar o primeiro tipo de acordos como endoprocedimentais de conteúdo estritamente procedimental, consagrados nos n.os 1 e 2 do artigo 57.o do CPA, e o segundo como acordos endoprocedimentais de conteúdo substantivo, presentes no n.o 3 do mesmo artigo.
Nos acordos endoprocedimentais de conteúdo meramente procedimental permite-se que o órgão competente da Administração Pública e os interessados acordem os termos do procedimento. Podem definir uma questão que se releve controvertida para as partes no âmbito do procedimento sem que tenham influência direta no conteúdo do ato administrativo final, à luz dos n.os 1 e 2.
Por outro lado, e de acordo com o n.o 3 do mesmo artigo, os acordos endoprocedimentais de conteúdo substantivo traduzem um processo de contratualização da decisão administrativa, sendo que o órgão competente para a decisão final é obrigado a emanar uma decisão que corresponda ao conteúdo do acordado com o particular, ou seja, é possível que o órgão e os interessados acordem o próprio conteúdo da decisão final.
Segundo SOFIA DAVID, em ambas as modalidades de acordos endoprocedimentais há exercício do poder discricionário por parte da Administração Pública e exige-se que ocorra durante o procedimento, daí o nome de “endoprocedimentais”, como já foi referido. Existe também uma exigência relativa à forma do acordo de que este seja celebrado por escrito, de acordo com o n.o 1 do artigo 57.o. A forma escrita é uma formalidade insubstituível que distingue esta figura de outras semelhantes, que terão de manter-se como simples acordos informais da Administração, sem vinculatividade e obrigatoriedade jurídicas próprias. O preceito relativo à forma abrange também o tipo de acordos procedimentais estipulados no n.o 3 do mesmo artigo por analogia, de acordo com SÉRVULO CORREIA.
À luz do n.o 2 do já referido artigo, os acordos endoprocedimentais têm caráter vinculativo, uma vez que correspondem a uma concordância de vontades. Encontram-se presentes nesta figura dois fatores que tornam estes acordos vinculativos, sendo eles o consenso entre as partes e a necessária bilateralidade, segundo JOANA DE SOUSA LOUREIRO.
SOFIA DAVID diz que a conceção tradicional do Direito Administrativo focada no ato administrativo como uma conduta unilateral e autoritária da Administração tem cada vez mais vindo a ser substituída por uma ideia mais ampla de atuações administrativas, já não centradas no ato, mas antes que se caracterizam pelo procedimento adotado ou pela relação jurídica que estabelecem, sendo a consagração legal dos acordos endoprocedimentais um excelente exemplo disso mesmo.
Face ao exposto, a consagração legal dos acordos endoprocedimentais no artigo 57.o pretendeu não só enquadrar e regular juridicamente uma figura que há muito fazia parte da atuação da Administração Pública portuguesa, como também reconhecer legalmente esta forma de acordos que tem como objetivos auxiliar os particulares e a Administração a encontrarem a melhor solução para cada caso, diminuir a litigiosidade e alcançar decisões administrativas mais equilibradas, justas e consensuais. O ato administrativo que seja praticado em violação do acordo é, então, anulável.
Bibliografia:
LOUREIRO, Joana de Sousa, Os acordos endoprocedimentais no novo CPA, in Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo, Volume I, 2016
CORREIA, Sérvulo, Acordos endoprocedimentais, in Comentários à Revisão do Código do Procedimento Administrativo, 2016
DAVID, Sofia, O princípio da adequação procedimental, os acordos endoprocedimentais e a administração electrónica no novo CPA, in Cadernos de Justiça Administrativa – Braga, 1996 – No 116 (Mar.-Abr. 2016)
Novo Código de Procedimento Administrativo, Fernando Gonçalves et al. , 5ª edição, 2017
Andreia Agostinho, n.o 56788
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