sábado, 31 de março de 2018

A Discricionariedade no âmbito Procedimental

A Administração pública, enquanto poder público que assegura, não só o estabelecimento de normas jurídicas, mas também a tomada de decisões, de forma a satisfazer tarefas essenciais para a sociedade (art.23º, nº1, CRP), atende a determinados princípios. Estes consistem em proposições que devem ser aplicadas no exercício da Administração pública, sendo um dos mais cruciais o princípio da prossecução do interesse público, disposto no artigo 266º, nº1 da Constituição da República Portuguesa. Contudo, tal não impede a Administração de estar limitada por valores, designadamente o princípio da legalidade, isto é, a obediência à lei; o princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares; o princípio da igualdade; o princípio da justiça; o princípio da proporcionalidade; entre outros (art.266º, nº1 e 2, CRP). Não obstante, a lei atribui à Administração uma certa autonomia através de um poder denominado poder discricionário, cujo objectivo consiste na persecução objectiva do interesse colectivo.

A Vinculação e a Discricionariedade
De forma a facilitar o entendimento da noção de discricionariedade, é necessário estabelecer a diferença entre actos vinculados e actos discricionários.
Por um lado, os actos vinculados caracterizam-se por serem decisões unilaterais, visto que, através da lei, são fixados todos os elementos e pressupostos de um específico acto administrativo no ordenamento. Por outras palavras, através da interpretação é possível identificar o total conteúdo do acto, não existindo qualquer margem de autonomia decisória por parte da Administração. Assim, o acto vinculativo trata-se, nas palavras do professor Diogo Freitas do Amaral, de uma manifestação do poder administrativo.
Por outro lado, um acto é discricionário quando existe um conjunto de elementos que não são pontualmente previstos pela lei, o que permite à Administração, após ponderar todas as soluções possíveis, optar e decidir consoante os critérios que considerar mais adequados ao caso concreto e às circunstâncias, tendo sempre em vista o resultado, ou seja, a concretização do interesse público.
Porém, importa também ratificar que não existem comportamentos administrativos totalmente discricionários ou totalmente vinculados, devido à possibilidade de existirem condicionantes apesar da ampla autonomia, ou pequenas zonas discricionárias perante uma vinculação quase integral. Assim, dever-se-à referir, não à totalidade, mas sim à predominância da vinculação/discricionariedade de um acto.

A Natureza Jurídica
Segundo o professor Marcello Caetano, que representa a doutrina clássica, o poder discricionário traduz-se numa excepção ao princípio da legalidade enquanto poder livre do Direito. Desta forma, e apesar de estar obrigada a seguir a indicação da lei, o poder discricionário disponibilizaria à Administração uma área em que esta pudesse fazer o que entendesse, isto é, escolher livremente o procedimento a adoptar em cada caso concreto, sem nunca perder de vista a concretização do interesse público.
No entanto, tal entendimento não é aceite pelo professor Diogo Freitas do Amaral, que rejeita a ideia de que o poder discricionário, enquanto manifestação da liberdade de escolher, seja uma excepção à legalidade, mas antes “(...) um modo especial de configuração da legalidade administrativa.”, podendo este tipo de poderes existir somente se a lei os declarar com tais. O professor faz ainda questão de defender que a apreciação jurisdicional do poder discricionário é menos intensa do que a apreciação jurisdicional do poder vinculado, mas todos os aspectos do poder, sejam eles discricionários, ou vinculados, são sempre susceptíveis de controlo jurisdicional, uma vez que o tribunal pode controlar o modo como a Administração interpreta o Direito e aplica-o a um caso concreto.
Relativamente a esta posição, o professor Vasco Pereira da Silva acrescenta que não faz sentido falar em liberdade de decidir, visto que as vontades normativas correspondem à realização do ordenamento jurídico. Logo, estas não são vontades livres, isto é, não são vontades iguais às de um cidadão pois a Administração actua de acordo com as regras de competência e nos termos que são definidos no quadro das diferentes leis.
A ideia de liberdade já aqui referida era também partilhada pelo professor José Manuel Sérvulo Correia, que defendia que a discricionariedade consistia na “(...) liberdade concedida por lei à Administração de adoptar um de entre vários comportamentos possíveis, escolhido pela Administração como o mais adequado à realização do interesse público protegido pela norma que a confere.”. Deste modo, para o professor, o poder discricionário poderia ser dividido em duas dimensões:
1. A margem de livre apreciação: Antes da tomada de decisão, deve a Administração analisar e fazer escolhas.
2. A margem de livre decisão: No momento de decidir há várias soluções possíveis, devendo a Administração fazer a escolha final.

No que diz respeito a este entendimento, o professor Vasco Pereira da Silva critica a utilização do termo “livre”, uma vez que, segundo este autor, a palavra “margem” já transmite, só por si, a ideia de liberdade de escolha. Acrescenta-se o facto de que, para o professor Vasco Pereira da Silva, existe uma terceira dimensão da discricionariedade:
1. A margem de interpretação: Cabe à Administração realizar, em primeiro lugar, a interpretação da norma, sendo que esta, por vezes, é composta por conceitos vagos ou indeterminados, devido à linguagem utilizada ou ao facto de apelarem a convicções éticas.
2. A margem de apreciação: Analisam-se as circunstâncias.
3. A margem de decisão: A tomada da decisão final tendo em vista o resultado pretendido.

O professor Freitas do Amaral enumera as circunstâncias que poderão ser discricionárias, desde que, como fora acima referido, não estejam vinculadas pela lei.
A faculdade de escolher quando praticar o acto administrativo.
A decisão de praticar o acto administrativo.
A delimitação de quais os factos e interesses relevantes para cada caso.
A escolha do conteúdo da decisão; sendo esta discricionariedade optativa se se colocar como alternativa à norma ou criativa se o legislador estabelecer uma base do acto, deixando a determinação do restante ao executor do acto.
A escolha da forma do acto.
As formalidades da preparação ou do exercício do acto.
A opção de fundamentar ou não a decisão, pois existem casos em que a fundamentação não é imposta (art. 124º do CPA).
A possibilidade de estabelecer cláusulas acessórias (art.149º do CPA).

O Princípio de Adequação Procedimental e os Acordos Endoprocedimentais
Disposto no artigo 1º, nº1 do Código do Procedimento Administrativo está a noção de procedimento administrativo que o caracteriza como sendo “(...) a sucessão ordenada de atos e formalidades relativos à formação, manifestação e execução da vontade dos órgãos da Administração Pública”. Quer isto dizer que se trata de uma realidade dividida em fases, em função das formas de actuação administrativa que se desenrolam sequencialmente de acordo com determinadas formalidades e prazos. Esta noção é vivamente rejeitada pelo professor Vasco Pereira da Silva que considera-a antiquada, dado que transmite uma visão de subordinação do procedimento face às formas de actuação da Administração.
A discricionariedade no exercício do procedimento administrativo encontra-se disposta no artigo 56º do CPA. Este, através do denominado princípio da adequação procedimental, confere discricionariedade ao responsável pela direcção do procedimento, na sua respectiva estruturação à luz dos “ (...) interesses públicos da participação, da eficiência, da economicidade e da celeridade na preparação da decisão.”. Por outras palavras, o responsável pelo procedimento deverá optar pelas soluções que ele considere como mais adequadas pela sua funcionalidade e concretização relativamente aos interesses públicos referidos no artigo, sem nunca desobedecer à exigência de respeito pelos princípios gerais da actividade administrativa, que constam dos artigos 3º a 19º do Código do Procedimento Administrativo.
Todavia, é também necessário não esquecer que esta discricionariedade só poderá existir caso se verifique a ausência de normas específicas que predeterminem como deverá o procedimento avançar para os particulares através de actos e formalidades procedimentais. Acrescenta-se o facto de que a Administração necessita sempre de fundamentar os seus actos, isto é, explicar o porquê de exercer a sua liberdade. Caso contrário, existiria uma justificação para dar aso à nulidade do acto, pois não há liberdade sem limites.
Os acordos endoprocedimentais previstos no artigo 57º do CPA surgem como consequência do referido princípio da adequação procedimental, apesar destes acordos serem já celebrados, muito antes da sua consagração no CPA, através do recurso aos artigos 179º, nº1 e 198º do CPA anterior. Segundo o professor José Manuel Sérvulo Correia, apesar de ser utilizado o termo “acordo”, trata-se de um contracto sobre o exercício de poderes administrativos entre a entidade no exercício de poderes administrativos e os particulares (art.1º, nº6, alínea b), do Código dos Contractos Públicos), concedendo-lhes liberdade contractual, e, tal como qualquer contracto, se não for cumprido poderá originar uma indemnização.
Ao recorrer a estes contractos administrativos, existe uma maior paridade entre as duas partes, o que poderá resultar numa diminuição da litigiosidade, uma maior eficiência e igualdade procedimental e um aumento da certeza relativamente ao procedimento e ao conteúdo da decisão.
É possível dividir os acordos endoprocedimentais em duas modalidades distintas consagradas no nº 1 e 2 do artigo 57º e no nº3 do mesmo artigo, respectivamente: os acordos de conteúdo estritamente procedimental e os acordos de conteúdo substantivo. Os primeiros consistem em acordos onde o órgão que irá realizar a decisão final e os interessados poderão estipular os termos do procedimento. Os segundos consistem em acordos onde o órgão que irá realizar a decisão final e os interessados determinam o próprio conteúdo da decisão final, delimitando o que é ou não discricionário e, consequentemente, garantindo uma maior segurança à Administração visto que esta passaria onde teria, precisamente, de alocar os seus recursos. No entanto, e independentemente das diferenças entre as modalidades, ambas pressupõem, tanto um exercício de discricionariedade por parte da Administração, como um acordo que ocorra na pendência ou durante o procedimento.
Concluindo, tanto o princípio de adequação procedimental como os acordos endoprocedimentais, enquanto manifestações da discricionariedade no âmbito procedimental, permitem que o procedimento seja adaptado aos casos concretos, por determinação discricionária do responsável pela direção ou por acordo entre o órgão competente e o interessado, o que, inevitavelmente, contribui para uma maior flexibilização do procedimento.

Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas do. Curso De Direito Administrativo - Volume II. Livraria Almedina, 2016.
CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso De Direito Administrativo - Parte Geral, Intervenção do Estado e Estrutura da Administração. Editora Juspodivm, 2008.
CORREIA, José Manuel Sérvulo. Noções De Direito Administrativo. Danubio, Lda, 1982.
NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Curso De Direito Administrativo: Parte Introdutória, Parte Geral, Parte Especial. 16ª ed., Forense, 2014.
SOUSA, Marcelo Rebelo de; MATOS, André Salgado de. Direito Administrativo Geral - Tomo I. Publicações Dom Quixote, 2008.

Webgrafia:
GONÇALVES, Pedro Costa. “Âmbito De Aplicação Do Código Do Procedimento Administrativo (Na Versão Do Anteprojeto De Revisão).” Pedro Costa Gonçalves, 2013, <www.pedrocostagoncalves.eu/online.html.>
MACIEIRINHA, Tiago. “Formalidades Do Procedimento e Regime Jurídico Das Irregularidades De Natureza Formal e Procedimental No Projeto Do Novo CPA*.” LinkedIn, 20 de Dezembro. 2016, <https://pt.linkedin.com/pulse/formalidades-do-procedimento-e-regime-jur%C3%ADdico-das-de-macieirinha>
SILVEIRA, João Tiago. “Novo Código Do Procedimento Administrativo.” João Tiago Silveira, 11 de Novembro. 2015, <www.joaotiagosilveira.org/pages/artigo.php/A=9___collection=articles>

Carolina Duarte, nº 50076

Sem comentários:

Enviar um comentário

Administração pública online

Administração Pública online                     Com o avanço do mundo digital, tem-se procurado desenvolver os meios de trabalho e serviços...