sábado, 31 de março de 2018

Acordos Endoprocedimentais


O preâmbulo do Novo Código de Procedimento Administrativo indica uma das principais funções da revisão de 2015, que consistiu em “transformar profundamente o modo de funcionamento da Administração Pública nas suas relações com os cidadãos”. Tanto assim é, que utiliza a expressão “novo Código” diversas vezes para a ele se referir. Esta revisão introduziu um capítulo dedicado à “Relação Jurídica procedimental” no qual se “procede à identificação dos sujeitos da relação jurídica procedimental, reconhecendo o paralelismo entre particulares e Administração, como simultâneos titulares de situações jurídicas subjetivas que disciplinam as situações da vida em que ambos intervêm no âmbito do procedimento administrativo”.

Neste contexto enquadra-se o novo protagonismo que o CPA vem dar ao procedimento, como que em oposição ao “actocentrismo”, na expressão do professor VASCO PEREIRA DA SILVA. De acordo com a professora SOFIA DAVID, a conceção tradicional do direito administrativo focava-se no ato administrativo como uma conduta unilateral e autoritária da Administração, que tem vindo a ser substituída por uma ideia mais ampla de atuações administrativas, centradas no procedimento adotado.

É nesta parte III do CPA, no artigo 57°, que estão regulados os Acordos Endoprocedimentais: “Através destes, os sujeitos da relação jurídica procedimental podem convencionar termos do procedimento que caibam no âmbito da discricionariedade procedimental ou o próprio conteúdo da decisão a tomar”.

Podemos retirar do artigo 57° CPA que a relação jurídica entre a Administração e o particular tem evoluído no sentido de beneficiar este último, uma vez que a discricionariedade administrativa passa a ser partilhada, pela letra da lei, com o cidadão. Os acordos endoprocedimentais permitem que os sujeitos da relação jurídica acordem entre si os termos do procedimento, balizados pela discricionariedade procedimental. Tendo a Administração um poder discricionário, no decurso do procedimento, o particular passa a influir na decisão final através de uma negociação, que permite alcançar um resultado que se espera satisfatório para ambas as partes. Podemos considerar que o particular vê diminuir o seu âmbito de incerteza.

O n° 1 estabelece a exigência de redução a escrito, enquanto o n°2 ressalta o carácter vinculativo destes acordos. A forma escrita é uma formalidade insubstituível, que distingue esta figura de outras similares, que serão simples acordos informais da Administração, sem vinculatividade. No n°3 torna-se possível que o órgão e os interessados acordem o conteúdo da decisão final. A administração exerce antecipadamente o poder discricionário que detém para a prática do ato final. Compromete-se a atuar num determinado sentido ou com um determinado conteúdo.

Nas palavras de MARTA PORTOCARRERO, “os limites ao conteúdo do contrato hão-de coincidir com os limites do próprio poder exercido pela Administração. De facto, do lado do particular o que existe é liberdade, ele negoceia, acorda, vincula-se no exercício da sua autonomia e liberdade contratual, estando apenas limitado por aquilo que a lei proíbe. Pelo contrário, do lado do órgão administrativo competente a vinculação é positiva: só pode fazer o que encontre na lei fundamento”.

Chamam-se acordos endoprocedimentais porque se exige que o acordo ocorra na pendência ou durante o procedimento.

É de extrema importância referir, como referido pela professora JOANA DE SOUSA LOUREIRO que, no plano formal, a decisão continua a ser unilateral, assumindo a forma de um ato administrativo ainda que fundado num acordo endoprocedimental prévio.

Para o professor MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, complementarmente ligado aos acordos endoprocedimentais está o artigo 56° CPA, que se refere ao princípio da adequação procedimental, em que na ausência de normas injuntivas, o responsável pela direção do procedimento pode estruturá-lo de forma discricionária.

Até à reforma do CPA em 2015, os acordos endoprocedimentais não se encontravam regulados. Apesar disso, não se podiam considerar como um fenómeno desconhecido da praxis administrativa, devido a uma divergência doutrinária que seguidamente referirei. Tendo como nota dominante a informalidade, considerava-se que estes acordos  não eram dotados de efeitos jurídicos, apesar de também este aspeto não ser consensual. A doutrina que considerava que tinham vinculatividade, fundamentava-a nos princípios da boa fé e da confiança. Para que não ficassem desprotegidos os particulares que se relacionam com a Administração, surge nestes acordos os princípios anteriormente referidos como elemento que lhe garantia alguma vinculatividade. O poder discricionário atribuído à administração para atuar em determinado caso vê-se então restringido pela decisão final, na medida em que a parte negociada se torna vinculativa nos termos negociados. Eram acordos, até à reforma de 2015, votados a uma categoria não vinculativa de modos de atuação, pois a sua atuação era pautada pelo consenso entre as partes e princípios como o da boa fé, não existindo no CPA norma que referisse especificamente os acordos endoprocedimentais.

Como referido anteriormente, há uma divergência doutrinária quanto à natureza jurídica dos acordos endoprocedimentais, uma vez que o CPA não indica expressamente qual o regime jurídico que se vai aplicar aos acordos endoprocedimentais – se o regime do ato, se o regime do contrato. A doutrina portuguesa maioritária caracteriza estes acordos como contratos, havendo vozes discordantes que consideram que aqui ainda se está frente a atos administrativos.

Para a professora JOANA DE SOUSA LOUREIRO, estamos perante verdadeiros contratos celebrados entre a Administração e os administrados. Existindo um acordo prévio à emanação do ato que define o seu conteúdo, devemos concluir que tal acordo vincula a Administração à prática do ato devido, ao abrigo do princípio pacta sunt servanda. E sendo contratos, a celebração dos mesmos só é possível porque a Administração Pública goza de liberdade contratual.

O professor VASCO PEREIRA DA SILVA, no seu livro Em Busca do Ato Administrativo Perdido, referia-se a eles como atos administrativos consensuais por consubstanciar uma fase consensual integrada nos próprios atos administrativos.

Para a parte da doutrina que considera os acordos endoprocedimentais como contratos, estes já se podiam considerar como integrantes do CPA anterior a 2015, nos artigos 179°/1 e 198° como fundamento para a celebração de acordos substitutivos do procedimento unilateral.

A professora JOANA DE SOUSA LOUREIRO analisa os acordos endoprocedimentais tendo em conta 4 características:

·        Finalidade – da leitura dos n° 1 e 3 resulta que os acordos podem ter como finalidade acordar termos do procedimento e definir o conteúdo do ato que vier por fim ao procedimento. Os acordos endoprocedimentais de conteúdo estritamente procedimental podem somente definir uma questão que se revele controvertida para as partes no âmbito do procedimento sem que tenham influência direta no conteúdo do ato administrativo final. Os acordos endoprocedimentais de conteúdo substantivo traduzem um processo de autovinculação contratualizada da decisão administrativa, obrigando o órgão a emanar uma decisão correspondente ao conteúdo do acordo.

·        Exigência de forma escrita – Este requisito pretende conferir solenidade à figura

·        Vinculatividade

·        Objeto – nos acordos endoprocedimentais de natureza substantiva consiste na determinação, total ou parcial, do conteúdo discricionário do ato que vier por fim ao procedimento. O objeto dos acordos endoprocedimentais de conteúdo estritamente procedimental, cujo objetivo é definir termos do procedimento, fixar a interpretação de normas, estipular a valoração probatória de certo documento, etc

A celebração dos acordos endoprocedimentais tem várias vantagens, quer para a Administração quer para o particular, como a flexibilização do procedimento que é cerceada pelo princípio da legalidade e pelo princípio da legalidade contratual pública; Aplicação da melhor solução ao caso concreto, pois uma decisão baseada na vontade de ambas as partes será sempre mais conciliadora; Diminuição da litigiosidade que é consequência direta da negociação do conteúdo do ato; Eficiência do procedimento.

Como desvantagem, podemos considerar a vinculação de ambas as partes ao acordo.

Para concluir, e nas palavras do professor DUARTE B. RODRIGUES SILVA e do professor PAULO OTERO, através da conclusão de acordos endoprocedimentais, reconhece-se o valor da participação de um particular interessado na tramitação do procedimento, no sentido de atribuir valor à sua colaboração na formação da decisão final, em termos que a vinculam, permitindo que o exercício da discricionariedade administrativa seja moldado a dois, determinando uma abdicação da típica unilateralidade decisória da administração pública e, por isso mesmo, transformando o ato administrativo final num ato consensual.


Bibliografia:

LOUREIRO, Joana de Sousa, Os acordos endoprocedimentais no novo CPA, in Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo, volume I, 2016

SILVA, Duarte B. Rodrigues, Os acordos endoprocedimentais da Administração Pública, (Dissertação de Mestrado, 2003)

Novo Código do Procedimento Administrativo Anotado e Comentado, Quinta Edição, Julho 2017, Almedina

ALMEIDA, Mário Aroso de, Teoria Geral do Direito Administrativo, 2016

DAVID, Sofia, O Princípio da adequação procedimental, os acordos endoprocedimentais e a Administração eletrónica no novo CPA in Cadernos de Justiça Administrativa, número 116, Março – Abril 2016, Centro de Estudos Jurídicos do Minho





Madalena Dória, subturma 10, Aluna número 56754

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