O preâmbulo do Novo Código de Procedimento
Administrativo indica uma das principais funções da revisão de 2015, que
consistiu em “transformar profundamente o
modo de funcionamento da Administração Pública nas suas relações com os
cidadãos”. Tanto assim é, que utiliza a expressão “novo Código” diversas vezes para a ele se referir. Esta revisão
introduziu um capítulo dedicado à “Relação Jurídica procedimental” no qual se “procede à identificação dos sujeitos da
relação jurídica procedimental, reconhecendo o paralelismo entre particulares e
Administração, como simultâneos titulares de situações jurídicas subjetivas que
disciplinam as situações da vida em que ambos intervêm no âmbito do
procedimento administrativo”.
Neste contexto enquadra-se o novo protagonismo que o
CPA vem dar ao procedimento, como que em oposição ao “actocentrismo”, na
expressão do professor VASCO PEREIRA DA SILVA. De acordo com a professora SOFIA
DAVID, a conceção tradicional do direito administrativo focava-se no ato
administrativo como uma conduta unilateral e autoritária da Administração, que
tem vindo a ser substituída por uma ideia mais ampla de atuações
administrativas, centradas no procedimento adotado.
É nesta parte III do CPA, no artigo 57°, que estão
regulados os Acordos Endoprocedimentais: “Através
destes, os sujeitos da relação jurídica procedimental podem convencionar termos
do procedimento que caibam no âmbito da discricionariedade procedimental ou o
próprio conteúdo da decisão a tomar”.
Podemos retirar do artigo 57° CPA que a relação
jurídica entre a Administração e o particular tem evoluído no sentido de
beneficiar este último, uma vez que a discricionariedade administrativa passa a
ser partilhada, pela letra da lei, com o cidadão. Os acordos endoprocedimentais
permitem que os sujeitos da relação jurídica acordem entre si os termos do
procedimento, balizados pela discricionariedade procedimental. Tendo a
Administração um poder discricionário, no decurso do procedimento, o particular
passa a influir na decisão final através de uma negociação, que permite
alcançar um resultado que se espera satisfatório para ambas as partes. Podemos
considerar que o particular vê diminuir o seu âmbito de incerteza.
O n° 1 estabelece a exigência de redução a escrito,
enquanto o n°2 ressalta o carácter vinculativo destes acordos. A forma escrita
é uma formalidade insubstituível, que distingue esta figura de outras similares,
que serão simples acordos informais da Administração, sem vinculatividade. No
n°3 torna-se possível que o órgão e os interessados acordem o conteúdo da
decisão final. A administração exerce antecipadamente o poder discricionário
que detém para a prática do ato final. Compromete-se a atuar num determinado
sentido ou com um determinado conteúdo.
Nas palavras de MARTA PORTOCARRERO, “os limites ao conteúdo do contrato hão-de coincidir
com os limites do próprio poder exercido pela Administração. De facto, do lado
do particular o que existe é liberdade, ele negoceia, acorda, vincula-se no exercício
da sua autonomia e liberdade contratual, estando apenas limitado por aquilo que
a lei proíbe. Pelo contrário, do lado do órgão administrativo competente a
vinculação é positiva: só pode fazer o que encontre na lei fundamento”.
Chamam-se acordos endoprocedimentais porque se exige
que o acordo ocorra na pendência ou durante o procedimento.
É de extrema importância referir, como referido pela
professora JOANA DE SOUSA LOUREIRO que, no plano formal, a decisão continua a
ser unilateral, assumindo a forma de um ato administrativo ainda que fundado
num acordo endoprocedimental prévio.
Para o professor MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, complementarmente
ligado aos acordos endoprocedimentais está o artigo 56° CPA, que se refere ao
princípio da adequação procedimental, em que na ausência de normas injuntivas, o
responsável pela direção do procedimento pode estruturá-lo de forma
discricionária.
Até à reforma do CPA em 2015, os acordos
endoprocedimentais não se encontravam regulados. Apesar disso, não se podiam considerar
como um fenómeno desconhecido da praxis administrativa, devido a uma
divergência doutrinária que seguidamente referirei. Tendo como nota dominante a
informalidade, considerava-se que estes acordos não eram dotados de efeitos jurídicos, apesar
de também este aspeto não ser consensual. A doutrina que considerava que tinham
vinculatividade, fundamentava-a nos princípios da boa fé e da confiança. Para que
não ficassem desprotegidos os particulares que se relacionam com a
Administração, surge nestes acordos os princípios anteriormente referidos como
elemento que lhe garantia alguma vinculatividade. O poder discricionário
atribuído à administração para atuar em determinado caso vê-se então
restringido pela decisão final, na medida em que a parte negociada se torna
vinculativa nos termos negociados. Eram acordos, até à reforma de 2015, votados
a uma categoria não vinculativa de modos de atuação, pois a sua atuação era
pautada pelo consenso entre as partes e princípios como o da boa fé, não
existindo no CPA norma que referisse especificamente os acordos
endoprocedimentais.
Como referido anteriormente, há uma divergência
doutrinária quanto à natureza jurídica dos acordos endoprocedimentais, uma vez
que o CPA não indica expressamente qual o regime jurídico que se vai aplicar
aos acordos endoprocedimentais – se o regime do ato, se o regime do contrato. A
doutrina portuguesa maioritária caracteriza estes acordos como contratos,
havendo vozes discordantes que consideram que aqui ainda se está frente a atos
administrativos.
Para a professora JOANA DE SOUSA LOUREIRO, estamos
perante verdadeiros contratos celebrados entre a Administração e os
administrados. Existindo um acordo prévio à emanação do ato que define o seu
conteúdo, devemos concluir que tal acordo vincula a Administração à prática do
ato devido, ao abrigo do princípio pacta
sunt servanda. E sendo contratos, a celebração dos mesmos só é possível
porque a Administração Pública goza de liberdade contratual.
O professor VASCO PEREIRA DA SILVA, no seu livro Em Busca do Ato Administrativo Perdido, referia-se
a eles como atos administrativos consensuais por consubstanciar uma fase
consensual integrada nos próprios atos administrativos.
Para a parte da doutrina que considera os acordos endoprocedimentais
como contratos, estes já se podiam considerar como integrantes do CPA anterior
a 2015, nos artigos 179°/1 e 198° como fundamento para a celebração de acordos
substitutivos do procedimento unilateral.
A professora JOANA DE SOUSA LOUREIRO analisa os
acordos endoprocedimentais tendo em conta 4 características:
·
Finalidade – da leitura dos n° 1 e 3 resulta
que os acordos podem ter como finalidade acordar termos do procedimento e
definir o conteúdo do ato que vier por fim ao procedimento. Os acordos
endoprocedimentais de conteúdo estritamente procedimental podem somente definir
uma questão que se revele controvertida para as partes no âmbito do
procedimento sem que tenham influência direta no conteúdo do ato administrativo
final. Os acordos endoprocedimentais de conteúdo substantivo traduzem um
processo de autovinculação contratualizada da decisão administrativa, obrigando
o órgão a emanar uma decisão correspondente ao conteúdo do acordo.
·
Exigência de forma escrita – Este
requisito pretende conferir solenidade à figura
·
Vinculatividade
·
Objeto – nos acordos endoprocedimentais
de natureza substantiva consiste na determinação, total ou parcial, do conteúdo
discricionário do ato que vier por fim ao procedimento. O objeto dos acordos
endoprocedimentais de conteúdo estritamente procedimental, cujo objetivo é definir termos do procedimento, fixar a interpretação de normas,
estipular a valoração probatória de certo documento, etc
A celebração dos acordos endoprocedimentais tem
várias vantagens, quer para a Administração quer para o particular, como a flexibilização do procedimento que é
cerceada pelo princípio da legalidade e pelo princípio da legalidade contratual
pública; Aplicação da melhor solução ao
caso concreto, pois uma decisão baseada na vontade de ambas as partes será
sempre mais conciliadora; Diminuição da
litigiosidade que é consequência direta da negociação do conteúdo do ato; Eficiência do procedimento.
Como desvantagem, podemos considerar a vinculação de
ambas as partes ao acordo.
Para concluir, e nas palavras do professor DUARTE B.
RODRIGUES SILVA e do professor PAULO OTERO, através da conclusão de acordos
endoprocedimentais, reconhece-se o valor da participação de um particular
interessado na tramitação do procedimento, no sentido de atribuir valor à sua
colaboração na formação da decisão final, em termos que a vinculam, permitindo
que o exercício da discricionariedade administrativa seja moldado a dois,
determinando uma abdicação da típica unilateralidade decisória da administração
pública e, por isso mesmo, transformando o ato administrativo final num ato
consensual.
Bibliografia:
LOUREIRO, Joana de Sousa, Os acordos endoprocedimentais
no novo CPA, in Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo,
volume I, 2016
SILVA, Duarte B. Rodrigues, Os acordos
endoprocedimentais da Administração Pública, (Dissertação de Mestrado, 2003)
Novo Código do Procedimento Administrativo Anotado e
Comentado, Quinta Edição, Julho 2017, Almedina
ALMEIDA, Mário Aroso de, Teoria Geral do Direito
Administrativo, 2016
DAVID, Sofia, O Princípio da adequação
procedimental, os acordos endoprocedimentais e a Administração eletrónica no
novo CPA in Cadernos de Justiça Administrativa, número 116, Março – Abril 2016,
Centro de Estudos Jurídicos do Minho
GONÇALVES, Pedro Costa, Âmbito de aplicação do Código
do Procedimento Administrativo in https://www.google.pt/url?sa=t&source=web&rct=j&url=http://www.pedrocostagoncalves.eu/PDF/textos/CA100.pdf&ved=2ahUKEwihpoLIg5faAhWBtxQKHdZ3BooQFjAEegQIAxAB&usg=AOvVaw2960t6lrZT4_Wj_Soyiw2S
SILVEIRA, João Tiago, Novo Código do Procedimento
Administrativo in https://www.google.pt/url?sa=t&source=web&rct=j&url=http://www.joaotiagosilveira.org/mediaRep/jts/files/CPA_AICEP_09112015.pdf&ved=2ahUKEwihpoLIg5faAhWBtxQKHdZ3BooQFjACegQICBAB&usg=AOvVaw2mtijLwWoLCTphibBrsU_O
Madalena Dória, subturma 10, Aluna número 56754
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