sábado, 31 de março de 2018

O auxílio administrativo

1. Introdução
Através da autorização legislativa contida na Lei n.º 42/2014, de 11 de Julho, o legislador optou por rever o Código de Procedimento Administrativo (doravante, CPA), que acabou por resultar na criação de um novo código.
Dada esta alteração estrutural no procedimento administrativo português, que veio ora alterar muitos dos fundamentos do regime anterior, ora inserir inovatoriamente outros, compete analisar e conhecer as novas figuras que através dela surgiram. Reconhcendo a necessidade de investigação que surge com a entrada em vigor do CPA de 2015 proponho-me a analisar uma das suas grandes novidades: a figura do auxílio administrativo, que o legislador português, declaradamente, “retira” do regime de procedimento administrativo alemão.
Definido que está o objeto de estudo deste trabalho, é momento de definir os parâmetros por via dos dos quais este se vai desenvolver. Procurar-se-á transmitir a definição e natureza do instituto, seguindo-se uma análise aos prós e contras que resultam da sua consagração, nomeadamente apreciando se a técnica legislativa utilizada para esse fim foi ou não adequada, de forma a dotá-lo da necessária utilidade e exequibilidade que, no fundo, fundamentem a sua existência e manutenção no atual Direito do Procedimento Administrativo.

2. O instituto do auxílio administrativo
2.1 Definição, natureza e análise geral do instituto
Inspirado pelo regime alemão, decidiu o legislador português consagrar um artigo no novo CPA que regula as situações em que um órgão da Administração Pública (doravante, AP) pode pedir a intervenção no procedimento administrativo de qualquer outro órgão da AP, em determinadas circunstâncias que são aí enumeradas (taxativamente). Poderá fazê-lo, nomeadamente, quando este último órgão tenha um melhor conhecimento da matéria relevate ou tenha acesso a documentação necessária à preparação da decisão do órgão que requer esse auxílio.
No fundo, esta figura surge enquadrada num espírito legislativo que inspira o legislador do CPA de 2015 a estruturar e fundamentar as relações adminsitrativas (quer interorgânicas, quer com os particulares) de acordo com os vetores da cooperação e da colaboração. Prima facie, esta intenção legislativa que se procurou imprimir significaria um progresso ao nível da especialização, setorialização e eficiência da atividade administrativa.
É importante notar que, ao contrário de outros institutos inseridos de forma totalmente inovatória (v.g., as conferências procedimentais, art. 77.º e ss.), o auxílio administrativo não constitui uma total novidade no nosso procedimento administrativo. É necessário desde logo ter em conta o art. 92º do antigo CPA, que declarava que “O órgão instrutor pode solicitar a realização de diligências de prova a outros serviços da administração central, regional ou local, quando elas não possam ser por si efetuadas”. Para além deste artigo, também outros (nomeadamente, os artigos 56.º, 57.º, 90.º e 94.º, n.º 2), de uma forma ou de outra, já incitavam ao desenvolvimento de formas de cooperação horizontal entre diferentes órgãos na fase de instrução.
Consequentemente, e apesar de a forma como é consagrado o novo artigo que regula o auxílio administrativo não o fazer parecer, a verdade é que não se pode considerar que represente uma total novidade no nosso ordenamento jurídico. Disso teve também noção o próprio legislador que, no ponto 9 do preâmbulo do novo CPA afirma que “o art. 92.º do anterior Código é eliminado porque, na realidade, ele respeita ao auxílio administrativo, mas apenas no âmbito demasiado restrito da realização de diligências de prova”.
A primeira grande diferença entre o modo como estava previsto no CPA de 1991 e a forma como vem a ser consagrada no CPA de 2015 consiste, sobretudo, no facto de se passar de normas dispersas ao longo do código para uma só norma, devidamente consolidada e densificada, que consegue exprimir o teor da instituto num só artigo.
Depois, há ainda uma notória ampliação do âmbito da figura. Para chegarmos a esta conclusão evidente, basta comparar o restrito âmbito de aplicação que resultava da realização de diligências probatórias na fase de instrução, definida no antigo art. 92.º, com a forma muito mais ampla como se encontra atualmente consagrada no art. 66.º do novo CPA.
De acordo com uma análise comparatística, não se deve descurar a verdadeira origem da figura, a fonte de inspiração do legislador do CPA de 2015. A verdade é que o regime do auxílio administrativo constante no art. 66.º do novo CPA deriva do direito alemão (figura que no direito alemão é chamada de Amtshilfe). De resto, o próprio legislador português assume-o declaradamente no ponto 9 do preâmbulo do novo CPA, ao dizer que o ”O art. 66.º é dedicado à figura do auxílio administrativo. No ser n.º 1, estabelecem-se pressupostos que, embora sob uma formulação simplificada, se inspiram no n.º 1 do art. 5.º da lei alemã do procedimento administrativo
Como nota RUI TAVARES LANCEIRO, esta consagração do auxílio administrativo na lei do procedimento administrativo alemão provém de uma imposição constitucional (art. 35.º da Lei Fundamental de Bona) que, por si só, já permitiria afirmar – mesmo na eventual ausência de lei ou contrato que o prevejam – a existência de um dever de cooperação entre autoridades.
À semelhança do que sucede no direito alemão, o legislador português também afeiçoou o instituto como instrumento situado no âmbito do poder discricionário da AP, apenas aplicável nos casos em que a lei não preveja um outro regime legal específico. O art. 66.º português aplica-se “Para além dos casos em que a lei imponha a intervenção de outros órgãos no procedimento”. Logo, conclui-se que a aplicação do art. 66.º é afastada sempre que houver um outro regime especial que determine a obrigatoriedade de consultar um outro órgão da AP.
Logo no n.º 1 do artigo determina-se quem é capaz para solicitar o auxílio administrativo. Essa faculdade está ao alcance do órgão competente para a decisão final, podendo o exercício da mesma derivar da sua própria iniciativa, bem como ainda da iniciativa do órgão responsável pela direção do procedimento (por via de proposta) ou ainda de particulares (a título de requerimento, devendo a legitimidade procedimental dos mesmos ser aferida tendo em conta a conjugação dos art. 65.º, n.º 1, alínea c) e art. 68.º).
O auxílio administrativo pode ser solicitado em três situações legalmente fixadas: (a) quando para um melhor conhecimento da matéria relevante seja necessário efetuar uma investigação para a qual o órgão a quem é dirigida a solicitação disponha de competência exclusiva ou de conhecimentos aprofundados aos quais o órgão solicitante não tenha acesso; (b) quando o órgão a quem é dirigida a solicitação tenha em seu poder documentos ou dados cujo conhecimento seja necessário à preparação da decisão ou (c) quando a instrução requeira a intervenção de pessoal ou o emprego de meios técnicos de que o órgão competente para a decisão final não disponha.
Por último, o n.º 3 do artigo em análise determina o que deve suceder se o pedido de auxílio administrativo for recusado pelo órgão solicitado, determinando que a questão seja “resolvida, consoante o caso, pela autoridade competente para a resolução de conflitos de atribuições ou de competência entre os órgãos solicitante e solicitado ou, não havendo, por órgão que exerça poderes de direção, superintendência ou tutela sobre o órgão solicitado”.

2.2 Principais dificuldades do regime do auxílio administrativo
Em primeiro lugar, podemos verificar que, seguindo o exemplo da solução adotada no direito alemão - muito mais criteriosa -, o legislador poderia ter definido de forma mais específica  e desenvolvida vários aspetos que são suscitados, para os quais não há uma resposta clara e com os quais inevitavelmente se defronta o intérprete.
Desde logo, podemos dizer que o nosso legislador não definiu um critério para determinar quando é que a entidade solicitada pode recusar prestar o auxílio administrativo requerido, não regulou a forma como deve ser feita a notificação dessa recusa, nem fixou formas de determinar como deve ser feita  a escolha da entidade a quem deve ser solicitado o auxílio.
Sucessivamente, o legislador português poderia ter ido mais longe, harmonizando de forma mais adequada com o restante ordenamento jurídico a regulação acolhida, o que favoreceria em maior escala a própria coerência do sistema normativo.
Desde logo, não encontramos na nossa Constituição uma disposição expressa que determine a necessidade de cooperação interinstitucional entre órgãos que prossigam o interesse público – como, pelo contrário, sucede no art. 35.º da Lei Fundamental alemã. Apesar de o art. 267.º da Constituição da República Portuguesa estabelece, nos seus n.ºs 2 e 5 – de resto, em conformidade com o art. 12.º do CPA -, um modelo de colaboração entre os cidadãos e a AP, aproximando estes da realidade procedimental, a verdade é que não se formalizou um modelo semelhante relativamente aos órgãos que prosseguem o interesse público.
   Esta lacuna supra denunciada extende-se à legislação ordinária. O facto é que o novo CPA – tal como o seu predecessor - também não consagra, nos seus princípios gerais, um dever de colaboração entre os órgãos administrativos, como de resto verificam os autores MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM. Portanto, verificando-se que atualmente se encontram consagrados princípios como o da colaboração com os particulares (art. 11.º) ou o da cooperação leal com a União Europeia (art. 19.º), não se percebe o porquê desta lacuna.
Verifica-se ainda que o regime peca por se basear em demasiados conceitos indeterminados que dificultam a sua aplicação em concreto. Justificar-se-ia que o legislador, de forma a facilitar a atuação da AP, tivesse sido mais claro e objetivo na sua intervenção regulativa. Nomeadamente, e como já foi referido supra, poderia ter incorporado critérios que orientassem a determinação de qual é a entidade que, em cada caso, se revela a mais adequada para se solicitar o auxílio. Dadas as dificuldade que daqui derivam, são a jurisprudência e a doutrina chamadas a terreno para, através do seu labor jurídico, esclarecer as questões suscitadas.
Por fim, como observa JOÃO TIAGO SILVEIRA, “são criados deveres de cooperação que legitimam órgãos da AP a abster-se de decidir rapidamente e a remeter questões para outros órgãos, com prejuízo para a celeridade e simplificação”. Uma eventual demora na prestação de auxílio representará um factor de acréscimo de complexidade e morosidade no procedimento administrativo - até porque, nesses casos, surge a necessidade de intervir um terceiro órgão (art. 66.º, n.º 3 CPA).

Conclusão
O novo CPA traz-nos, de facto, muitas novidades. Sem dúvida que a consagração deste instituto é um factor positivo a reter – apesar de, como se analisou supra, não constituir numa total inovação no procedimento administrativo português -, principalmente pela ratio que lhe está subjacente, sendo evidente o objetivo de tornar a AP mais eficiente e qualificada no desenvolvimento da sua atuação. Contudo, nem por isso deixa de ser possível apontar algumas inconsistências na forma como foi esboçado o respetivo regime pelo legislador que, de acordo com a análise que foi feita, poderia ter sido mais coerente e concreto naquilo que ficou estipulado. Procurou densificar todo o instituto num artigo apenas (art. 66.º) e talvez por esse motivo não conseguir dar resposta a todas as nuances e questões concretas que a figura em causa poderia suscitar. E sendo o regime do auxílio administrativo algo que se encontra na área de discricionariedade das entidades adminsitrativas que prosseguem o interesse público, requerer-se-ia uma maior definição na estruturação dos respetivos vetores que devem pautar a condução do procedimento por estas, em nome da utilidade e exequibilidade do próprio instituto, quando a ele seja necessário recorrer.

Bibliografia

AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 3ª ed., Coimbra: Edições Almedina, 2016.
QUADROS, Fausto, Comentários À Revisão do Código do Procedimento Administrativo. Coimbra: Edições Almedina, 2016.
GONÇALVES, Fernando; ALVES, Manuel João; VIERIRA, Vítor Manuel Freitas; GONÇALVES, Rui Miguel; CORREIA, Bruno e GONÇALVES, Mariana Violante, Novo Código do Procedimento Administrativo, Anotado e Comentado, 2.ª ed., Almedina, 2015.
OLIVEIRA, Mário Esteves de, GONÇALVES, Pedro Costa e AMORIM, João Pacheco de, Código de Procedimento Administrativo, Comentado, 2.ª ed., Almedina, 2010.
BABO PINTO, Ana Rita, A Consagração (por Defeito) do Auxílio Administrativo no novo CPA, Faculdade do Minho: Braga, 2015.

Bruno Silva, nº 57244, 2º ano, turma B, subturma 10

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