1. Introdução
Através da autorização legislativa contida na Lei
n.º 42/2014, de 11 de Julho, o legislador optou por rever o Código de
Procedimento Administrativo (doravante, CPA), que acabou por resultar na
criação de um novo código.
Dada esta alteração estrutural no procedimento
administrativo português, que veio ora alterar muitos dos fundamentos do regime
anterior, ora inserir inovatoriamente outros, compete analisar e conhecer as novas
figuras que através dela surgiram. Reconhcendo a necessidade de investigação
que surge com a entrada em vigor do CPA de 2015 proponho-me a analisar uma das suas
grandes novidades: a figura do auxílio administrativo, que o legislador
português, declaradamente, “retira” do regime de procedimento administrativo alemão.
Definido que está o objeto de estudo deste trabalho,
é momento de definir os parâmetros por via dos dos quais este se vai
desenvolver. Procurar-se-á transmitir a definição e natureza do instituto,
seguindo-se uma análise aos prós e contras que resultam da sua consagração,
nomeadamente apreciando se a técnica legislativa utilizada para esse fim foi ou
não adequada, de forma a dotá-lo da necessária utilidade e exequibilidade que,
no fundo, fundamentem a sua existência e manutenção no atual Direito do
Procedimento Administrativo.
2. O instituto do auxílio
administrativo
2.1 Definição, natureza e
análise geral do instituto
Inspirado pelo regime alemão, decidiu o legislador
português consagrar um artigo no novo CPA que regula as situações em que um
órgão da Administração Pública (doravante, AP) pode pedir a intervenção no
procedimento administrativo de qualquer outro órgão da AP, em determinadas
circunstâncias que são aí enumeradas (taxativamente). Poderá fazê-lo,
nomeadamente, quando este último órgão tenha um melhor conhecimento da matéria
relevate ou tenha acesso a documentação necessária à preparação da decisão do
órgão que requer esse auxílio.
No fundo, esta figura surge enquadrada num espírito
legislativo que inspira o legislador do CPA de 2015 a estruturar e fundamentar as
relações adminsitrativas (quer interorgânicas, quer com os particulares) de
acordo com os vetores da cooperação e da colaboração. Prima facie, esta intenção legislativa que se procurou imprimir
significaria um progresso ao nível da especialização, setorialização e
eficiência da atividade administrativa.
É importante notar que, ao contrário de outros
institutos inseridos de forma totalmente inovatória (v.g., as conferências procedimentais, art. 77.º e ss.), o auxílio
administrativo não constitui uma total novidade no nosso procedimento
administrativo. É necessário desde logo ter em conta o art. 92º do antigo CPA,
que declarava que “O órgão instrutor pode
solicitar a realização de diligências de prova a outros serviços da
administração central, regional ou local, quando elas não possam ser por si
efetuadas”. Para além deste artigo, também outros (nomeadamente, os artigos
56.º, 57.º, 90.º e 94.º, n.º 2), de uma forma ou de outra, já incitavam ao
desenvolvimento de formas de cooperação horizontal entre diferentes órgãos na
fase de instrução.
Consequentemente, e apesar de a forma como é
consagrado o novo artigo que regula o auxílio administrativo não o fazer parecer,
a verdade é que não se pode considerar que represente uma total novidade no
nosso ordenamento jurídico. Disso teve também noção o próprio legislador que,
no ponto 9 do preâmbulo do novo CPA afirma que “o art. 92.º do anterior Código é eliminado porque, na realidade, ele
respeita ao auxílio administrativo, mas apenas no âmbito demasiado restrito da
realização de diligências de prova”.
A primeira grande diferença entre o modo como estava
previsto no CPA de 1991 e a forma como vem a ser consagrada no CPA de 2015
consiste, sobretudo, no facto de se passar de normas dispersas ao longo do
código para uma só norma, devidamente consolidada e densificada, que consegue
exprimir o teor da instituto num só artigo.
Depois, há ainda uma notória ampliação do âmbito da
figura. Para chegarmos a esta conclusão evidente, basta comparar o restrito
âmbito de aplicação que resultava da realização de diligências probatórias na
fase de instrução, definida no antigo art. 92.º, com a forma muito mais ampla
como se encontra atualmente consagrada no art. 66.º do novo CPA.
De acordo com uma análise comparatística, não se
deve descurar a verdadeira origem da figura, a fonte de inspiração do
legislador do CPA de 2015. A verdade é que o regime do auxílio administrativo
constante no art. 66.º do novo CPA deriva do direito alemão (figura que no
direito alemão é chamada de Amtshilfe).
De resto, o próprio legislador português assume-o declaradamente no ponto 9 do
preâmbulo do novo CPA, ao dizer que o ”O
art. 66.º é dedicado à figura do auxílio administrativo. No ser n.º 1,
estabelecem-se pressupostos que, embora sob uma formulação simplificada, se
inspiram no n.º 1 do art. 5.º da lei alemã do procedimento administrativo”
Como nota RUI TAVARES LANCEIRO, esta consagração do auxílio administrativo na lei do procedimento
administrativo alemão provém de uma imposição constitucional (art. 35.º da Lei
Fundamental de Bona) que, por si só, já permitiria afirmar – mesmo na eventual
ausência de lei ou contrato que o prevejam – a existência de um dever de
cooperação entre autoridades.
À semelhança do que sucede no direito alemão, o
legislador português também afeiçoou o instituto como instrumento situado no âmbito
do poder discricionário da AP, apenas aplicável nos casos em que a lei não
preveja um outro regime legal específico. O art. 66.º português aplica-se “Para além dos casos em que a lei imponha a
intervenção de outros órgãos no procedimento”. Logo, conclui-se que a
aplicação do art. 66.º é afastada sempre que houver um outro regime especial
que determine a obrigatoriedade de consultar um outro órgão da AP.
Logo no n.º 1 do artigo determina-se quem é capaz
para solicitar o auxílio administrativo. Essa faculdade está ao alcance do órgão competente para a decisão final,
podendo o exercício da mesma derivar da sua própria iniciativa, bem como ainda da
iniciativa do órgão responsável pela direção do procedimento (por via de
proposta) ou ainda de particulares (a título de requerimento, devendo a
legitimidade procedimental dos mesmos ser aferida tendo em conta a conjugação
dos art. 65.º, n.º 1, alínea c) e
art. 68.º).
O auxílio administrativo pode ser solicitado em três
situações legalmente fixadas: (a) quando para um melhor conhecimento da matéria
relevante seja necessário efetuar uma investigação para a qual o órgão a quem é
dirigida a solicitação disponha de competência exclusiva ou de conhecimentos
aprofundados aos quais o órgão solicitante não tenha acesso; (b) quando o órgão
a quem é dirigida a solicitação tenha em seu poder documentos ou dados cujo
conhecimento seja necessário à preparação da decisão ou (c) quando a instrução
requeira a intervenção de pessoal ou o emprego de meios técnicos de que o órgão
competente para a decisão final não disponha.
Por último, o n.º 3 do artigo em análise determina o
que deve suceder se o pedido de auxílio administrativo for recusado pelo órgão
solicitado, determinando que a questão seja “resolvida, consoante o caso, pela autoridade competente para a
resolução de conflitos de atribuições ou de competência entre os órgãos
solicitante e solicitado ou, não havendo, por órgão que exerça poderes de
direção, superintendência ou tutela sobre o órgão solicitado”.
2.2 Principais dificuldades do regime do auxílio administrativo
Em primeiro lugar, podemos verificar que, seguindo o
exemplo da solução adotada no direito alemão - muito mais criteriosa -, o
legislador poderia ter definido de forma mais específica e desenvolvida vários aspetos que são suscitados,
para os quais não há uma resposta clara e com os quais inevitavelmente se
defronta o intérprete.
Desde logo, podemos dizer que o nosso legislador não
definiu um critério para determinar quando é que a entidade solicitada pode
recusar prestar o auxílio administrativo requerido, não regulou a forma como
deve ser feita a notificação dessa recusa, nem fixou formas de determinar como deve
ser feita a escolha da entidade a quem
deve ser solicitado o auxílio.
Sucessivamente, o legislador português poderia ter
ido mais longe, harmonizando de forma mais adequada com o restante ordenamento
jurídico a regulação acolhida, o que favoreceria em maior escala a própria coerência
do sistema normativo.
Desde logo, não encontramos na nossa Constituição
uma disposição expressa que determine
a necessidade de cooperação interinstitucional entre órgãos que prossigam o
interesse público – como, pelo contrário, sucede no art. 35.º da Lei
Fundamental alemã. Apesar de o art. 267.º da Constituição da República Portuguesa
estabelece, nos seus n.ºs 2 e 5 – de resto, em conformidade com o art. 12.º do
CPA -, um modelo de colaboração entre os cidadãos e a AP, aproximando estes da realidade
procedimental, a verdade é que não se formalizou um modelo semelhante relativamente
aos órgãos que prosseguem o interesse público.
Esta lacuna supra denunciada extende-se à legislação
ordinária. O facto é que o novo CPA – tal como o seu predecessor - também não
consagra, nos seus princípios gerais, um dever de colaboração entre os órgãos administrativos,
como de resto verificam os autores MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA
GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM. Portanto, verificando-se que atualmente se
encontram consagrados princípios como o da colaboração com os particulares
(art. 11.º) ou o da cooperação leal com a União Europeia (art. 19.º), não se
percebe o porquê desta lacuna.
Verifica-se ainda que o regime peca por se basear em
demasiados conceitos indeterminados que dificultam a sua aplicação em concreto.
Justificar-se-ia que o legislador, de forma a facilitar a atuação da AP,
tivesse sido mais claro e objetivo na sua intervenção regulativa. Nomeadamente,
e como já foi referido supra, poderia
ter incorporado critérios que orientassem a determinação de qual é a entidade
que, em cada caso, se revela a mais adequada para se solicitar o auxílio. Dadas
as dificuldade que daqui derivam, são a jurisprudência e a doutrina chamadas a
terreno para, através do seu labor jurídico, esclarecer as questões suscitadas.
Por fim, como observa JOÃO TIAGO SILVEIRA, “são
criados deveres de cooperação que legitimam órgãos da AP a abster-se de decidir
rapidamente e a remeter questões para outros órgãos, com prejuízo para a
celeridade e simplificação”. Uma eventual demora na prestação de auxílio
representará um factor de acréscimo de complexidade e morosidade no
procedimento administrativo - até porque, nesses casos, surge a necessidade de
intervir um terceiro órgão (art. 66.º, n.º 3 CPA).
Conclusão
O novo CPA traz-nos, de facto, muitas novidades. Sem
dúvida que a consagração deste instituto é um factor positivo a reter – apesar de,
como se analisou supra, não constituir
numa total inovação no procedimento administrativo português -, principalmente
pela ratio que lhe está subjacente, sendo
evidente o objetivo de tornar a AP mais eficiente e qualificada no
desenvolvimento da sua atuação. Contudo, nem por isso deixa de ser possível
apontar algumas inconsistências na forma como foi esboçado o respetivo regime
pelo legislador que, de acordo com a análise que foi feita, poderia ter sido
mais coerente e concreto naquilo que ficou estipulado. Procurou densificar todo
o instituto num artigo apenas (art. 66.º) e talvez por esse motivo não
conseguir dar resposta a todas as nuances
e questões concretas que a figura em causa poderia suscitar. E sendo o regime
do auxílio administrativo algo que se encontra na área de discricionariedade
das entidades adminsitrativas que prosseguem o interesse público,
requerer-se-ia uma maior definição na estruturação dos respetivos vetores que
devem pautar a condução do procedimento por estas, em nome da utilidade e exequibilidade
do próprio instituto, quando a ele seja necessário recorrer.
Bibliografia
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 3ª ed., Coimbra: Edições
Almedina, 2016.
QUADROS, Fausto, Comentários
À Revisão do Código do Procedimento Administrativo. Coimbra: Edições
Almedina, 2016.
GONÇALVES, Fernando; ALVES, Manuel João; VIERIRA,
Vítor Manuel Freitas; GONÇALVES, Rui Miguel; CORREIA, Bruno e GONÇALVES,
Mariana Violante, Novo Código do
Procedimento Administrativo, Anotado
e Comentado, 2.ª ed., Almedina, 2015.
OLIVEIRA, Mário Esteves de, GONÇALVES, Pedro Costa e
AMORIM, João Pacheco de, Código de
Procedimento Administrativo, Comentado,
2.ª ed., Almedina, 2010.
BABO PINTO, Ana Rita, A Consagração (por Defeito) do Auxílio Administrativo no novo CPA, Faculdade do Minho: Braga, 2015.
Bruno Silva, nº 57244, 2º ano, turma B, subturma 10
BABO PINTO, Ana Rita, A Consagração (por Defeito) do Auxílio Administrativo no novo CPA, Faculdade do Minho: Braga, 2015.
Bruno Silva, nº 57244, 2º ano, turma B, subturma 10
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