Para melhor se compreender o que é
a discricionariedade administrativa, importa, em primeiro lugar, referir que a
atuação da Administração Pública está limitada pela lei e pelo Direito, como
aliás o referem os arts. 266º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e
3º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) – vigora o princípio da
legalidade. A Administração Pública não dispõe de liberdade constitutiva para
escolher os fins que prossegue: é colocada perante fins heterónomos. A Administração
Pública exercita a sua liberdade e poder
de decisão no quadro das finalidades e orientações fornecidas pela lei e pelo
direito.
É importante fazer uma breve
distinção entre atos vinculados e atos discricionários, sendo que são estes
últimos que vão merecer aqui especial destaque. Quando a Administração não tem
qualquer poder de escolha em relação ao conteúdo da norma, estamos perante atos vinculados. Nestes casos, ela tem
uma ação meramente executiva, porque não pode escolher o modo e atuação. Por
outro lado, quando a lei se limita a definir os fins e os órgãos com
competência para os prosseguir, deixa ao critério da Administração a escolha de
quais os meios adequados para atingir esses fins, pelo que estamos perante atos discricionários.
Sublinhe-se, no entanto, que não há
atos completamente discricionários (porque, como já se disse, o fim e a
competência são sempre vinculados) nem atos completamente vinculados (visto que
a Administração pode, pelo menos, escolher o momento da prática do ato). Isto
significa, portanto, que os critérios a
que deve obedecer a escolha discricionária podem delimitar um espaço de decisão
variável, com mais ou menos liberdade. Quanto maior for o espaço de
liberdade deixado à Administração (órgão decisor), menores são as vinculações
da decisão.
Como bem afirma o Professor Doutor
João Caupers ‘’a decisão discricionária tem
de assentar numa racionalidade própria, susceptível de algum tipo de controlo;
não pode radicar num capricho (isso seria uma escolha arbitrária, perfeitamente lícita quando feita por um cidadão, mas
inaceitável se feita por um órgão da administração Pública).’’. Ou seja, a
Administração Pública deve tomar a decisão, de entre as possíveis e minimamente
adequadas, que lhe pareça mais adequada a satisfazer o interesse público.
Aliás, se assim não fosse, estar-se-ia a atraiçoar, a desvirtuar a intenção do
legislador ao atribuir o poder discricionário à Administração.
Torna-se agora relevante perceber
como evoluiu a ideia de poder discricionário em Portugal. Segundo o entendimento clássico, seguindo pelo
Professor Doutor Marcello Caetano, os atos vinculados distinguiam-se dos atos
discricionários porque estes últimos correspondiam a um espaço livre de Direito,
no qual os tribunais não poderiam intervir, o que significava que os atos
discricionários eram encarados como uma exceção
ao princípio da legalidade. Consequentemente, os atos discricionários não
poderiam ser sujeitos ao controlo judicial. Ora, isto não é assim, porque como
já vimos a Administração está sempre limitada pela lei, não pode atuar em seu
bel-prazer, ainda que no âmbito de poderes discricionários.
O Professor Doutor Freitas do
Amaral vem mais tarde discordar desta posição, afirmando que os atos discricionários não são uma exceção da
legalidade e que não há atos totalmente vinculados nem totalmente
discricionários. O poder discricionário existe quando e na medida em que a lei
o prevê e só pode ser exercido por quem a lei determinou e com o fim que esta
lhe atribuir. Levanta-se agora a questão: os atos discricionários são
controláveis judicialmente? Para este Professor a resposta é afirmativa. Embora
os meios judiciais não sejam tao intensos como são para controlar os atos
vinculados, é possível falar-se em
controlo judicial dos atos discricionários.
Seguidamente, temos a terceira
corrente de pensamento, oriunda do Direito Alemão e seguida entre nós pelo
Doutor Sérvulo Correia, que vem distinguir entre margem de livre decisão e margem de livre apreciação. A primeira
corresponderia à discricionariedade em sentido clássico, ou seja, à
possibilidade de a Administração proceder à decisão final, ponderando, de entre
várias hipóteses que estariam ao seu alcance, aquela lhe melhor satisfaria o
interesse público. A segunda corresponderia à apreciação realizada pela
Administração antes da tomada de decisão final.
Por último, cumpre mencionar a
posição do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, que acredita que em cada
poder da Administração existem elementos vinculados e discricionários. A discricionariedade da Administração começa no
momento de interpretar a lei num certo caso concreto, já que sabemos que
para a mesma norma existem várias interpretações possíveis, todas legítimas.
Corresponde isto à corrente americana designada Culturalista, que parte da ideia que a interpretação das normas é
uma realidade cultural e que cada autor cria uma nova interpretação. No momento
da interpretação há, sem dúvida, interpretações que não são possíveis fazer,
porque não cabem no espírito nem na letra da lei, o que corresponde ao poder
vinculado. Contudo, se a norma utiliza um conceito indeterminado, a
Administração tem de começar por preenchê-lo, o que corresponde ao poder
discricionário (claro que sempre dentro dos limites da lei). A Administração
terá ainda a margem de apreciação e de
decisão. Este Professor não concorda com a denominação ‘’livre’’ margem de
decisão e apreciação feita pelo Doutor Sérvulo Correia, pois a margem nunca é
livre, está condicionada pela lei e pelo princípio da prossecução do interesse
público (art. 266/1 CRP). Portanto, para o Professor Doutor Vasco Pereira da
Silva, estes são os três momentos de discricionariedade que caracterizam a
atividade administrativa.
Face ao exposto, há que reforçar a
ideia de que todo o exercício da discricionariedade deve ser pautado e
condicionado pelo respeito e pela aplicação dos princípios gerais da atividade
administrativa, com dignidade legal e constitucional, como o princípio da
igualdade (art. 6º do CPA e art. 13º da CRP), entre muitos outros princípios de
extrema importância, expressos nos artigos 3º e seguintes do CPA, bem como
pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, presentes nos artigos 24º
e seguintes da nossa Constituição. Verifica-se, deste modo, que a
discricionariedade não é um poder livre, mas sim um poder jurídico limitado
pela lei: é um poder-dever jurídico.
Bibliografia
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo II, 3ª
edição, Coimbra, 2016
CAUPERS, João, Introdução ao Direito Administrativo, 9ª edição, Âncora Editora,
Lisboa, 2007
PEREIRA DA SILVA, Vasco, Em busca do ato administrativo perdido, Almedina,
Coimbra, 1996
PORTOCARRERO, M. Francisca, ‘’Notas
sobre variações em matéria de discricionariedade. A propósito de algumas
novidades terminológicas e da importação de construções dogmáticas pelas nossas
doutrina e jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo’’, AA, Juris et de jure, Coimbra Editora, Porto, 1998
Maria Manuel Pedro, nº 57136, subturma 10, turma B
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