terça-feira, 27 de março de 2018

Discricionariedade Administrativa


Para melhor se compreender o que é a discricionariedade administrativa, importa, em primeiro lugar, referir que a atuação da Administração Pública está limitada pela lei e pelo Direito, como aliás o referem os arts. 266º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 3º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) – vigora o princípio da legalidade. A Administração Pública não dispõe de liberdade constitutiva para escolher os fins que prossegue: é colocada perante fins heterónomos. A Administração Pública exercita a sua liberdade e poder de decisão no quadro das finalidades e orientações fornecidas pela lei e pelo direito.
É importante fazer uma breve distinção entre atos vinculados e atos discricionários, sendo que são estes últimos que vão merecer aqui especial destaque. Quando a Administração não tem qualquer poder de escolha em relação ao conteúdo da norma, estamos perante atos vinculados. Nestes casos, ela tem uma ação meramente executiva, porque não pode escolher o modo e atuação. Por outro lado, quando a lei se limita a definir os fins e os órgãos com competência para os prosseguir, deixa ao critério da Administração a escolha de quais os meios adequados para atingir esses fins, pelo que estamos perante atos discricionários.
Sublinhe-se, no entanto, que não há atos completamente discricionários (porque, como já se disse, o fim e a competência são sempre vinculados) nem atos completamente vinculados (visto que a Administração pode, pelo menos, escolher o momento da prática do ato). Isto significa, portanto, que os critérios a que deve obedecer a escolha discricionária podem delimitar um espaço de decisão variável, com mais ou menos liberdade. Quanto maior for o espaço de liberdade deixado à Administração (órgão decisor), menores são as vinculações da decisão.
Como bem afirma o Professor Doutor João Caupers ‘’a decisão discricionária tem de assentar numa racionalidade própria, susceptível de algum tipo de controlo; não pode radicar num capricho (isso seria uma escolha arbitrária, perfeitamente lícita quando feita por um cidadão, mas inaceitável se feita por um órgão da administração Pública).’’. Ou seja, a Administração Pública deve tomar a decisão, de entre as possíveis e minimamente adequadas, que lhe pareça mais adequada a satisfazer o interesse público. Aliás, se assim não fosse, estar-se-ia a atraiçoar, a desvirtuar a intenção do legislador ao atribuir o poder discricionário à Administração.
Torna-se agora relevante perceber como evoluiu a ideia de poder discricionário em Portugal. Segundo o entendimento clássico, seguindo pelo Professor Doutor Marcello Caetano, os atos vinculados distinguiam-se dos atos discricionários porque estes últimos correspondiam a um espaço livre de Direito, no qual os tribunais não poderiam intervir, o que significava que os atos discricionários eram encarados como uma exceção ao princípio da legalidade. Consequentemente, os atos discricionários não poderiam ser sujeitos ao controlo judicial. Ora, isto não é assim, porque como já vimos a Administração está sempre limitada pela lei, não pode atuar em seu bel-prazer, ainda que no âmbito de poderes discricionários.
O Professor Doutor Freitas do Amaral vem mais tarde discordar desta posição, afirmando que os atos discricionários não são uma exceção da legalidade e que não há atos totalmente vinculados nem totalmente discricionários. O poder discricionário existe quando e na medida em que a lei o prevê e só pode ser exercido por quem a lei determinou e com o fim que esta lhe atribuir. Levanta-se agora a questão: os atos discricionários são controláveis judicialmente? Para este Professor a resposta é afirmativa. Embora os meios judiciais não sejam tao intensos como são para controlar os atos vinculados, é possível falar-se em controlo judicial dos atos discricionários.
Seguidamente, temos a terceira corrente de pensamento, oriunda do Direito Alemão e seguida entre nós pelo Doutor Sérvulo Correia, que vem distinguir entre margem de livre decisão e margem de livre apreciação. A primeira corresponderia à discricionariedade em sentido clássico, ou seja, à possibilidade de a Administração proceder à decisão final, ponderando, de entre várias hipóteses que estariam ao seu alcance, aquela lhe melhor satisfaria o interesse público. A segunda corresponderia à apreciação realizada pela Administração antes da tomada de decisão final.
Por último, cumpre mencionar a posição do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, que acredita que em cada poder da Administração existem elementos vinculados e discricionários. A discricionariedade da Administração começa no momento de interpretar a lei num certo caso concreto, já que sabemos que para a mesma norma existem várias interpretações possíveis, todas legítimas. Corresponde isto à corrente americana designada Culturalista, que parte da ideia que a interpretação das normas é uma realidade cultural e que cada autor cria uma nova interpretação. No momento da interpretação há, sem dúvida, interpretações que não são possíveis fazer, porque não cabem no espírito nem na letra da lei, o que corresponde ao poder vinculado. Contudo, se a norma utiliza um conceito indeterminado, a Administração tem de começar por preenchê-lo, o que corresponde ao poder discricionário (claro que sempre dentro dos limites da lei). A Administração terá ainda a margem de apreciação e de decisão. Este Professor não concorda com a denominação ‘’livre’’ margem de decisão e apreciação feita pelo Doutor Sérvulo Correia, pois a margem nunca é livre, está condicionada pela lei e pelo princípio da prossecução do interesse público (art. 266/1 CRP). Portanto, para o Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, estes são os três momentos de discricionariedade que caracterizam a atividade administrativa.
Face ao exposto, há que reforçar a ideia de que todo o exercício da discricionariedade deve ser pautado e condicionado pelo respeito e pela aplicação dos princípios gerais da atividade administrativa, com dignidade legal e constitucional, como o princípio da igualdade (art. 6º do CPA e art. 13º da CRP), entre muitos outros princípios de extrema importância, expressos nos artigos 3º e seguintes do CPA, bem como pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, presentes nos artigos 24º e seguintes da nossa Constituição. Verifica-se, deste modo, que a discricionariedade não é um poder livre, mas sim um poder jurídico limitado pela lei: é um poder-dever jurídico.

Bibliografia
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo II, 3ª edição, Coimbra, 2016
CAUPERS, João, Introdução ao Direito Administrativo, 9ª edição, Âncora Editora, Lisboa, 2007
PEREIRA DA SILVA, Vasco, Em busca do ato administrativo perdido, Almedina, Coimbra, 1996
PORTOCARRERO, M. Francisca, ‘’Notas sobre variações em matéria de discricionariedade. A propósito de algumas novidades terminológicas e da importação de construções dogmáticas pelas nossas doutrina e jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo’’, AA, Juris et de jure, Coimbra Editora, Porto, 1998



Maria Manuel Pedro, nº 57136, subturma 10, turma B

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