terça-feira, 27 de março de 2018


DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA – EVOLUÇÃO CONCEPTUAL

A evolução do princípio da legalidade no sentido do seu alargamento e do seu entendimento material significou um maior controlo das atuações da Administração, visto não estar apenas em causa a contrariedade à lei, mas a todo o Direito. Vejamos, então, antes de mais, como evoluiu a noção de discricionariedade da Administração no nosso país, para melhor compreendermos os seus contornos atuais.



A evolução do princípio da legalidade teve como consequências o seu alargamento e uma evolução do seu entendimento material, em detrimento do seu sentido formal, o que levou à necessidade de um maior controlo da atuação da Administração. Primeiramente, cabe-nos analisar a evolução do próprio conceito/definição de discricionariedade administrativa no nosso ordenamento. De acordo com o referido nas aulas teóricas do Professor Regente Vasco Pereira da Silva, existiram quatro posições que corresponderam a quatro momentos de evolução do poder discricionário da Administração, no nosso ordenamento: (1) A primeira que vamos enunciar é a posição clássica marcada, sobretudo, por um entendimento liberal da legalidade e da separação de poderes. Esta posição foi adotada e defendida pelo Professor Marcello Caetano, e este defendia uma distinção entre atos vinculados e atos discricionários. O entendimento dos autores que defendiam esta posição (entre eles, como já foi referido, o Professor Marcello Caetano) era que quando se falava em poderes discricionários e poderes vinculados se estava a identificar atos administrativos e que, consequentemente, existiriam atos administrativos vinculados e atos administrativos discricionários. E que, por outro lado, o que correspondia aos poderes discricionários era uma realidade livre, uma realidade em que a Administração podia fazer aquilo que entendesse: esta apenas se encontrava limitada pelo princípio da legalidade, mas em tudo o que este princípio não abrangesse a Administração tinha livre poder. Um ato discricionário era considerado uma exceção ao princípio da legalidade e não poderia ser jurisdicionalmente controlado. Este foi o primeiro entendimento adotado em Portugal para a discricionariedade administrativa, entendimento esse que teve uma longa evolução até aos nossos dias.
O primeiro passo nessa evolução foi, de seguida, dado pelo Professor Freitas do Amaral: (2) O Professor Freitas do Amaral começa por referir que os atos praticados pela Administração são vinculados quando praticados por esta no exercício de poderes vinculados (“o poder é vinculado quando a lei não remete para o critério do respetivo titular a escolha da solução concreta mais adequada” – V. Freitas do AMARAL, Curso de Direito Administrativo Vol. II, p. 86), e são discricionários quando a Administração os pratica no âmbito dos seus poderes discricionários (o poder será “(…) discricionário quando o seu exercício fica entregue ao critério do respetivo titular” - V. Freitas do AMARAL, Curso de Direito Administrativo Vol. II, p. 86). Deste enunciado o Autor vai, seguidamente, referir que, em bom rigor, não existem atos totalmente vinculados, nem atos totalmente discricionários, os atos administrativos são o resultado de uma mistura entre o exercício dos poderes vinculados e dos poderes discricionários.

Outro aspeto importante é que o Professor Freitas do Amaral vem argumentar que o poder discricionário não é de todo uma exceção ao princípio da legalidade, mas sim uma derivação deste, pois só existe poder discricionário quando, e na medida em que a lei o confere. Ou seja, não estamos perante um poder inato da Administração, mas um poder derivado da lei, é esta que fundamenta o poder discricionário: define quem o pode exercer, o fim para que pode ser exercido e deve ser exercido de acordo com certos princípios jurídicos de atuação. Este entendimento foi importante na medida em que se passou a entender que por um lado, a Administração tem de cumprir o Direito e que, por outro lado, o tribunal pode controlar o modo como a Administração interpreta o Direito, e como o aplica ao caso concreto. Isto vem significar que os atos praticados pela Administração são suscetíveis de apreciação jurisdicional. É certo que a apreciação dos atos discricionários é menos intensa do que a apreciação dos atos vinculados, contudo todos os aspetos dos atos são sempre suscetíveis de controlo jurisdicional.
Apesar do grande passo que foi dado pelo Professor Freitas do Amaral, este continua a caraterizar o poder discricionário como um poder livre, continuando a falar numa liberdade de decidir, o que é algo que continua a não fazer sentido uma vez que estamos a falar de vontades normativas, vontades estas que não são de todo livres, pois a Administração atua conforme regras de competência e atua nos ditames que são definidos no quadro legal do nosso ordenamento.
Assim, o próximo passo dado nesta evolução foi dado pelo Professor Sérvulo Correia: (3) este na sua tese de doutoramento vem adotar uma posição que deriva do Direito alemão, esta posição distinguia dois conceitos, ou melhor, duas modalidades de discricionariedade, e que ele designa como “margem de livre decisão” e “margem de livre apreciação” por parte da Administração Pública. A primeira corresponderia à discricionariedade em sentido clássico e corresponderia, no entendimento do Professor, à possibilidade de proceder à decisão final; já a segunda corresponderia à situação de no exercício de um poder, a Administração possuir margem de apreciação, antes ainda da decisão final, ao nível da subsunção dos factos à norma.
Tendo em conta as aulas teóricas do Professor Regente Vasco Pereira da Silva, também considero que a distinção entre estes dois conceitos faz sentido, porque correspondem a momentos diferentes em que a Administração pode exercer o poder discricionário e, portanto, nestes dois momentos colocam-se aquelas questões relativas ao poder que está a ser exercido, de saber se se está perante um poder vinculado ou perante um poder discricionário.
Em primeiro lugar, como já referimos, a “margem de livre decisão”, corresponde à discricionariedade em sentido normal/ sentido clássico, ou seja, no final do procedimento administrativo, a Administração entende que há várias opções possíveis ou, melhor, a Administração conclui que tem ali uma margem de escolha. E a escolha entre as diferentes opções que possui vai depender da apreciação que faz das circunstâncias do caso concreto. Ou seja, a Administração vai valorar que acordo com critérios dos quais é responsável, critérios estes que correspondem ao exercício do poder discricionário, mas esta tem uma margem de escolha que corresponde à enunciada margem de decisão, contudo, esta margem de decisão não é livre.
Ou seja, a Administração vai valorar de acordo com critérios dos quais é responsável, e critérios que correspondem ao exercício do poder discricionário, mas a Administração tem uma margem de escolha que corresponde à tal margem de decisão. Só que esta margem de decisão nunca é livre, pois esta é delimitada por preceitos legais. Ou seja, tendo em conta, de novo, a posição do Professor Regente enunciada nas aulas teóricas, apesar de concordar com a distinção feita entre os dois conceitos e com a ideia de que, de facto, existe uma margem, não concordo com a consideração de que a margem de decisão e de apreciação sejam margens totalmente livres, pois estas podem ser sempre limitadas por preceitos legais no nosso ordenamento jurídico.
Outra crítica feita pelo Professor Regente, e com a qual também concordo, é o facto de esta distinção entre margem de apreciação e margem de decisão ser uma lógica demasiado formalista. Na perspetiva do Regente, não há nenhuma diferença entre os dois conceitos, a questão que se coloca aos dois conceitos é exatamente a mesma: a questão de saber qual vai ser a escolha da Administração, que é delimitada pelos mesmo critérios. Outra crítica que o Regente vem fazer é a de este considerar que, ao contrário desta posição existem 3 momentos de exercício discricionário da administração, em detrimento dos 2 momentos referidos nesta posição.
Penso que neste momento podemos entrar no entendimento enunciado e defendido pelo Professor Regente Vasco Pereira da Silva e defini-lo como o quarto entendimento do poder discricionário: (4) o Professor começa por referir que os poderes não são somente discricionários nem somente vinculados, mas dentro destes existem uma mistura de elementos de teor discricionário e de elementos de teor vinculado. Assim como também argumenta que a margem de decisão da Administração começa mesmo antes da própria fase decisória, pois a primeira coisa que esta tem de fazer quando está perante uma lei é aplicar a mesma ao caso concreto, e para tal é necessário o exercício de interpretação da mesma, e esta interpretação é, como é óbvio, uma atividade discricionária. Ou seja, é aqui que começa a discricionariedade da administração pública, no momento da escolha/ no momento em que decide qual é a melhor interpretação daquela lei para aquele caso concreto. De seguida, pode ainda ter uma margem de apreciação, isto significa que a Administração vai avaliar as circunstâncias que lhe vão atribuir aquele poder. Por último, a Administração tem ainda uma margem de decisão. Com isto, podemos concluir que, ao contrário do entendimento do Professor Sérvulo Correia, o Professor Vasco Pereira da Silva, identifica 3 momento que correspondem à ideia de discricionariedade. O Regente também considera que estes 3 momento são uma realidade lógica, que estes não podem ser separados uns dos outros, até porque estes momentos podem coincidir numa única circunstância, porque a Administração pode ser confrontada com a necessidade de dar uma resposta imediata. E dentro destes 3 momentos existem aspetos discricionários e aspetos vinculados.
Além disso, o ponto mais importante na posição do Regente é este considerar que não se deve associar a discricionariedade à liberdade, ou seja, aqui o Professor faz uma rutura total com as posições dos Autores anteriormente citados, como o Professor Freitas do Amaral e o Professor Sérvulo Correia. Isto porque, a Administração nunca é livre, estando sempre vinculada, na sua atuação. As escolhas são sempre limitadas e determinadas por vinculações legais, nunca há liberdade de escolha. As escolhas são sempre delimitadas/balizadas pelas opções do legislador e, sobretudo, pela prossecução do interesse público, e estas opções estabelecem responsabilidade e é sempre possível realizar um controlo jurisdicional a estes poderes. No fundo, os órgãos jurisdicionais podem controlar toda a atuação da Administração, isto porque a vontade dos órgãos públicos é, sem qualquer dúvida, uma vontade normativa, o que irá justificar que a Administração fique vinculada pelos seus atos e responda pelos mesmos. O Professor Vieira de Andrade também concorda com este entendimento, considerando que a discricionariedade é uma tarefa, uma função jurídica, não podendo ser confundida com o arbítrio e, consequentemente, fundar as suas decisões na sua mera vontade.
Do enunciado anteriormente decorre agora a necessidade de averiguar qual é na verdade o fundamento da discricionariedade administrativa. Já afastámos a hipótese de este fundamento se basear na vontade da Administração ou no arbítrio da mesma. Tendo em conta o Manual dos Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, estes apontam que a primeira ordem de motivos para a discricionariedade administrativa deve-se ao facto de ser na prática impossível prever e regular todas as decisões da vida corrente. A estes motivos juntam-se algumas razões de caráter jurídico: a discricionariedade também tem como objetivo assegurar o tratamento equitativo dos casos concretos (este motivo também é adotado pelos Professores Vasco Pereira da Silva e Freitas do Amaral). Outro motivo enunciado, que funciona de certo modo como fundamento do poder discricionário, é o princípio da separação de poderes enquanto critério de distribuição racional das funções do Estado pelos seus órgãos que conduz à limitação da densidade normativa, o que, para estes autores, justificaria a existência de uma margem de liberdade da Administração. Fácil é daqui retirar que o Professor Vasco Pereira da Silva não adere na totalidade este entendimento, pela referência à “liberdade”.
Como consequência do enunciado no ponto anterior, é seguro afirmar que o Regente se aproxima mais da posição do Professor Sérvulo Correia do que a posição do Professor Freitas do Amaral. Contudo é também seguro afirmar que se distancia em certos pontos do entendimento do primeiro autor referido: como já afirmámos, o Professor Vasco Pereira da Silva não considera adequado o uso do termo “livre”, por considerar que as decisões da Administrações estão sempre balizadas por critérios já anteriormente referidos; outro crítica já enunciada, é o Regente considerar que são 3 os momentos de discricionariedade administrativa e não 2 como enuncia o Professor Sérvulo Correia; por último, o Regente, também considera a tese deste autor demasiado formalista.
Ao mesmo tempo podemos afirmar que a posição do Professor Vasco Pereira da Silva se aproxima da do Professor Freitas do Amaral, no que toca aos elementos que vinculam todo o exercício da Administração. Ambos os autores defendem, atualmente, que os poderes discricionários não são apenas sujeitos a um controlo jurisdicional no que toca ao fim e à competência, como também estão sujeitos a um controlo quanto aos princípios gerais da Administração Pública (presentes no art. 266º CRP, no CPA e em legislação avulsa), este aumento do controlo deveu-se, sobretudo, ao alargamento do entendimento do princípio da legalidade.

Em suma, e tendo em conta todas as diferentes posições doutrinais apresentadas, aquela pela qual sinto maior afinidade é a posição defendida pelo Professor Regente Vasco Pereira da Silva, por considerar, tal como ele, que quando falamos no poder discricionário não estamos a falar de uma exceção ao princípio da legalidade, ou seja, não estamos a falar de um ato live, mas antes de um ato de encontra o seu fundamento no próprio princípio da legalidade e que se encontra limitado pelo mesmo, não tendo a Administração livre escolha, sobretudo, naquilo que se considera um ato discricionário. 

NUNO PIRES, 2º ANO, SUBTURMA 10, Nº: 57311



BIBLIOGRAFIA:
  • CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 
  • FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 3.ª ed., 2016, Almedina, Coimbra
  • REBELO DE SOUSA, Marcelo, SALGADO DE MATOS, André, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3.ª ed., Dom Quixote
  • PEREIRA DA SILVA, Vasco,Em busca do ato administrativo perdido, Almedina, 1996 
  • Aulas teóricas do Regente VASCO PEREIRA DA SILVA

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