DISCRICIONARIEDADE
ADMINISTRATIVA – EVOLUÇÃO CONCEPTUAL
A evolução
do princípio da legalidade no sentido do seu alargamento e do seu entendimento
material significou um maior controlo das atuações da Administração, visto
não estar apenas em causa a contrariedade à lei, mas a todo o Direito. Vejamos,
então, antes de mais, como evoluiu a noção de discricionariedade da
Administração no nosso país, para melhor compreendermos os seus contornos
atuais.
A evolução do princípio da legalidade teve como
consequências o seu alargamento e uma evolução do seu entendimento material, em
detrimento do seu sentido formal, o que levou à necessidade de um maior
controlo da atuação da Administração. Primeiramente, cabe-nos analisar a
evolução do próprio conceito/definição de discricionariedade administrativa no
nosso ordenamento. De acordo com o referido nas aulas teóricas do Professor Regente Vasco Pereira da Silva,
existiram quatro posições que corresponderam a quatro momentos de evolução do poder discricionário da Administração, no nosso ordenamento: (1) A primeira que vamos enunciar é a posição clássica
marcada, sobretudo, por um entendimento liberal da legalidade e da separação de
poderes. Esta posição foi adotada e defendida pelo Professor Marcello Caetano,
e este defendia uma distinção entre atos
vinculados e atos discricionários. O
entendimento dos autores que defendiam esta posição (entre eles, como já foi
referido, o Professor Marcello Caetano) era que quando se falava em poderes
discricionários e poderes vinculados se estava a identificar atos administrativos
e que, consequentemente, existiriam atos administrativos vinculados e atos
administrativos discricionários. E que, por outro lado, o que correspondia aos
poderes discricionários era uma realidade
livre, uma realidade em que a Administração podia fazer aquilo que
entendesse: esta apenas se encontrava limitada pelo princípio da legalidade, mas em tudo o que este princípio não
abrangesse a Administração tinha livre poder. Um ato discricionário era considerado uma exceção ao princípio da legalidade e não poderia ser
jurisdicionalmente controlado. Este foi o primeiro entendimento adotado em
Portugal para a discricionariedade administrativa, entendimento esse que teve
uma longa evolução até aos nossos dias.
O primeiro passo nessa evolução foi, de seguida, dado
pelo Professor Freitas do Amaral: (2)
O Professor Freitas do Amaral começa por referir que os atos praticados pela
Administração são vinculados quando praticados por esta no exercício de poderes
vinculados (“o poder é vinculado quando a
lei não remete para o critério do respetivo titular a escolha da solução
concreta mais adequada” – V. Freitas do AMARAL, Curso de Direito Administrativo Vol. II, p. 86), e são
discricionários quando a Administração os pratica no âmbito dos seus poderes
discricionários (o poder será “(…)
discricionário quando o seu exercício fica entregue ao critério do respetivo
titular” - V. Freitas do AMARAL, Curso
de Direito Administrativo Vol. II, p. 86). Deste enunciado o Autor vai,
seguidamente, referir que, em bom rigor, não existem atos totalmente
vinculados, nem atos totalmente discricionários, os atos administrativos são o
resultado de uma mistura entre o exercício dos poderes vinculados e dos poderes
discricionários.
Outro aspeto importante é que o Professor Freitas
do Amaral vem argumentar que o poder discricionário não é de todo uma exceção
ao princípio da legalidade, mas sim uma derivação
deste, pois só existe poder discricionário quando, e na medida em que a lei
o confere. Ou seja, não estamos perante um poder inato da Administração, mas um
poder derivado da lei, é esta que
fundamenta o poder discricionário: define quem o pode exercer, o fim para que
pode ser exercido e deve ser exercido de acordo com certos princípios jurídicos
de atuação. Este entendimento foi importante na medida em que se passou a
entender que por um lado, a Administração tem de cumprir o Direito e que, por
outro lado, o tribunal pode controlar o modo como a Administração interpreta o
Direito, e como o aplica ao caso concreto. Isto vem significar que os atos
praticados pela Administração são suscetíveis
de apreciação jurisdicional. É certo que a apreciação dos atos
discricionários é menos intensa do que a apreciação dos atos vinculados, contudo
todos os aspetos dos atos são sempre suscetíveis de controlo jurisdicional.
Apesar do grande passo que foi dado pelo Professor
Freitas do Amaral, este continua a caraterizar o poder discricionário como um
poder livre, continuando a falar numa liberdade
de decidir, o que é algo que continua a não fazer sentido uma vez que
estamos a falar de vontades normativas, vontades estas que não são de todo
livres, pois a Administração atua conforme regras de competência e atua nos
ditames que são definidos no quadro legal do nosso ordenamento.
Assim, o próximo passo dado nesta evolução foi dado
pelo Professor Sérvulo Correia: (3) este
na sua tese de doutoramento vem adotar uma posição que deriva do Direito
alemão, esta posição distinguia dois conceitos, ou melhor, duas modalidades de
discricionariedade, e que ele designa como “margem de livre decisão” e “margem
de livre apreciação” por parte da Administração Pública. A primeira
corresponderia à discricionariedade em sentido clássico e corresponderia, no
entendimento do Professor, à possibilidade de proceder à decisão final; já a
segunda corresponderia à situação de no exercício de um poder, a Administração
possuir margem de apreciação, antes ainda da decisão final, ao nível da
subsunção dos factos à norma.
Tendo em conta as aulas teóricas do Professor Regente
Vasco Pereira da Silva, também considero que a distinção entre estes dois
conceitos faz sentido, porque correspondem a momentos diferentes em que a
Administração pode exercer o poder discricionário e, portanto, nestes dois
momentos colocam-se aquelas questões relativas ao poder que está a ser
exercido, de saber se se está perante um poder vinculado ou perante um poder
discricionário.
Em primeiro lugar, como já referimos, a “margem de
livre decisão”, corresponde à discricionariedade em sentido normal/ sentido
clássico, ou seja, no final do procedimento administrativo, a Administração
entende que há várias opções possíveis ou, melhor, a Administração conclui que
tem ali uma margem de escolha. E a
escolha entre as diferentes opções que possui vai depender da apreciação que faz das circunstâncias
do caso concreto. Ou seja, a Administração vai valorar que acordo com critérios
dos quais é responsável, critérios estes que correspondem ao exercício do poder
discricionário, mas esta tem uma margem de escolha que corresponde à enunciada margem de decisão, contudo, esta margem de
decisão não é livre.
Ou seja, a
Administração vai valorar de acordo com critérios dos quais é responsável, e
critérios que correspondem ao exercício do poder discricionário, mas a
Administração tem uma margem de escolha que corresponde à tal margem de
decisão. Só que esta margem de decisão nunca é livre, pois esta é delimitada
por preceitos legais. Ou seja, tendo em conta, de novo, a posição do Professor
Regente enunciada nas aulas teóricas, apesar de concordar com a distinção feita
entre os dois conceitos e com a ideia de que, de facto, existe uma margem, não
concordo com a consideração de que a margem de decisão e de apreciação sejam
margens totalmente livres, pois estas podem ser sempre limitadas por preceitos
legais no nosso ordenamento jurídico.
Outra
crítica feita pelo Professor Regente, e com a qual também concordo, é o facto
de esta distinção entre margem de apreciação e margem de decisão ser uma lógica
demasiado formalista. Na perspetiva do Regente, não há nenhuma diferença entre
os dois conceitos, a questão que se coloca aos dois conceitos é exatamente a
mesma: a questão de saber qual vai ser a escolha da Administração, que é
delimitada pelos mesmo critérios. Outra crítica que o Regente vem fazer é a de
este considerar que, ao contrário desta posição existem 3 momentos de exercício
discricionário da administração, em detrimento dos 2 momentos referidos nesta
posição.
Penso que neste momento podemos entrar no entendimento
enunciado e defendido pelo Professor Regente Vasco Pereira da Silva e defini-lo
como o quarto entendimento do poder discricionário: (4) o Professor começa por referir que os poderes não são somente
discricionários nem somente vinculados, mas dentro destes existem uma mistura
de elementos de teor discricionário e de elementos de teor vinculado. Assim
como também argumenta que a margem de decisão da Administração começa mesmo
antes da própria fase decisória, pois a primeira coisa que esta tem de fazer
quando está perante uma lei é aplicar a mesma ao caso concreto, e para tal é
necessário o exercício de interpretação da mesma, e esta interpretação é, como
é óbvio, uma atividade discricionária. Ou seja, é aqui que começa a
discricionariedade da administração pública, no momento da escolha/ no momento
em que decide qual é a melhor interpretação daquela lei para aquele caso
concreto. De seguida, pode ainda ter uma margem de apreciação, isto significa
que a Administração vai avaliar as circunstâncias que lhe vão atribuir aquele
poder. Por último, a Administração tem ainda uma margem de decisão. Com isto,
podemos concluir que, ao contrário do entendimento do Professor Sérvulo
Correia, o Professor Vasco Pereira da Silva, identifica 3 momento que
correspondem à ideia de discricionariedade. O Regente também considera que
estes 3 momento são uma realidade lógica, que estes não podem ser separados uns
dos outros, até porque estes momentos podem coincidir numa única circunstância,
porque a Administração pode ser confrontada com a necessidade de dar uma
resposta imediata. E dentro destes 3 momentos existem aspetos discricionários e
aspetos vinculados.
Além disso, o ponto mais importante na posição do
Regente é este considerar que não se deve associar a discricionariedade à
liberdade, ou seja, aqui o Professor faz uma rutura total com as posições dos
Autores anteriormente citados, como o Professor Freitas do Amaral e o Professor
Sérvulo Correia. Isto porque, a Administração nunca é livre, estando sempre
vinculada, na sua atuação. As escolhas são sempre limitadas e determinadas por
vinculações legais, nunca há liberdade de escolha. As escolhas são sempre
delimitadas/balizadas pelas opções do legislador e, sobretudo, pela prossecução
do interesse público, e estas opções
estabelecem responsabilidade e é sempre possível realizar um controlo
jurisdicional a estes poderes. No fundo, os órgãos jurisdicionais podem
controlar toda a atuação da Administração, isto porque a vontade dos órgãos
públicos é, sem qualquer dúvida, uma vontade
normativa, o que irá justificar que a Administração fique vinculada pelos
seus atos e responda pelos mesmos. O Professor Vieira de Andrade também
concorda com este entendimento, considerando que a discricionariedade é uma
tarefa, uma função jurídica, não podendo ser confundida com o arbítrio e,
consequentemente, fundar as suas decisões na sua mera vontade.
Do enunciado anteriormente decorre agora a necessidade
de averiguar qual é na verdade o fundamento
da discricionariedade administrativa. Já afastámos a hipótese de este
fundamento se basear na vontade da Administração ou no arbítrio da mesma. Tendo
em conta o Manual dos Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de
Matos, estes apontam que a primeira ordem de motivos para a discricionariedade
administrativa deve-se ao facto de ser na prática impossível prever e regular
todas as decisões da vida corrente. A estes motivos juntam-se algumas razões de
caráter jurídico: a discricionariedade também tem como objetivo assegurar o
tratamento equitativo dos casos concretos (este motivo também é adotado pelos
Professores Vasco Pereira da Silva e Freitas do Amaral). Outro motivo
enunciado, que funciona de certo modo como fundamento do poder discricionário,
é o princípio da separação de poderes enquanto
critério de distribuição racional das funções do Estado pelos seus órgãos que
conduz à limitação da densidade normativa, o que, para estes autores, justificaria
a existência de uma margem de liberdade da Administração. Fácil é daqui retirar
que o Professor Vasco Pereira da Silva não adere na totalidade este
entendimento, pela referência à “liberdade”.
Como consequência do enunciado no ponto anterior, é seguro
afirmar que o Regente se aproxima mais da posição do Professor Sérvulo Correia
do que a posição do Professor Freitas do Amaral. Contudo é também seguro
afirmar que se distancia em certos pontos do entendimento do primeiro autor
referido: como já afirmámos, o Professor Vasco Pereira da Silva não considera
adequado o uso do termo “livre”, por considerar que as decisões da
Administrações estão sempre balizadas por critérios já anteriormente referidos;
outro crítica já enunciada, é o Regente considerar que são 3 os momentos de
discricionariedade administrativa e não 2 como enuncia o Professor Sérvulo
Correia; por último, o Regente, também considera a tese deste autor demasiado
formalista.
Ao mesmo tempo podemos afirmar que a posição do
Professor Vasco Pereira da Silva se aproxima da do Professor Freitas do Amaral,
no que toca aos elementos que vinculam todo o exercício da Administração. Ambos
os autores defendem, atualmente, que os poderes discricionários não são apenas
sujeitos a um controlo jurisdicional no que toca ao fim e à competência, como
também estão sujeitos a um controlo quanto aos princípios gerais da Administração Pública (presentes no art. 266º
CRP, no CPA e em legislação avulsa), este aumento do controlo deveu-se,
sobretudo, ao alargamento do entendimento do princípio da legalidade.
Em
suma, e tendo em conta todas as diferentes posições doutrinais apresentadas,
aquela pela qual sinto maior afinidade é a posição defendida pelo Professor
Regente Vasco Pereira da Silva, por considerar, tal como ele, que quando
falamos no poder discricionário não estamos a falar de uma exceção ao princípio
da legalidade, ou seja, não estamos a falar de um ato live, mas antes de um ato
de encontra o seu fundamento no próprio princípio da legalidade e que se
encontra limitado pelo mesmo, não tendo a Administração livre escolha,
sobretudo, naquilo que se considera um ato discricionário.
NUNO PIRES, 2º ANO, SUBTURMA 10, Nº: 57311
BIBLIOGRAFIA:
- CAETANO, Marcello, Manual de
Direito Administrativo, Vol. I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra,
- FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso
de Direito Administrativo, Vol. II, 3.ª ed., 2016, Almedina, Coimbra
- REBELO DE SOUSA, Marcelo,
SALGADO DE MATOS, André, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3.ª ed.,
Dom Quixote
- PEREIRA DA SILVA, Vasco,Em busca do ato administrativo perdido, Almedina, 1996
- Aulas teóricas do Regente VASCO PEREIRA DA SILVA
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