O
Poder Discricionário da Administração e os seus Limites
Ana
Carolina Godinho Neves, aluna nº 56901 da FDUL
De forma a poder atingir
os seus fins, a Administração Pública (doravante AP) é dotada de poderes,
conferidos por lei; o que consubstancia uma decorrência natural do Princípio da Legalidade, segundo o qual,
a AP deve prosseguir o interesse público em obediência à lei.
Os
poderes da AP são inerentes à atividade administrativa e de execução
obrigatória sendo, portanto, irrenunciáveis. Estes são-lhe impostos a fim de
que possa satisfazer as necessidades coletivas. Nessas condições, o poder tem
para o agente público o significado de dever para com a sociedade, sendo
considerado, por isso, um poder-dever de agir.
Sublinhe-se,
contudo, e como refere o Professor Diogo
Freitas do Amaral, que “a lei não regula sempre do mesmo modo os atos a
praticar pela Administração Pública: umas vezes concretiza tudo até ao
pormenor, outras vezes não o faz, e prefere habilitar a Administração a
determinar ela própria as escolhas a fazer. Ou, por outras palavras: a
regulamentação legal da atividade administrativa umas vezes é precisa, outras
vezes é imprecisa.”.
Fala-se então de vinculação e discricionaridade.
Assim, quando a AP se
encontre vinculada de forma precisa, terá apenas de executar o ato
administrativo tal como prevê a lei, reconduzindo a sua atuação a um único
comportamento possível.
A discricionariedade, por
sua vez, e utilizando as palavras do Professor João
Caupers “remete-nos para a ideia de escolha, de fazer uma coisa quando
se poderia ter feito outra. Melhor, quando a lei permitiria que se tivesse
feito outra.”. Isto é, quando a regulamentação legal da atividade
administrativa é imprecisa, a AP, tendo em conta um juízo de valores, tem
liberdade para escolher dentro de opções juridicamente válidas, aquela que
melhor concretize o interesse público.
Esta
margem de liberdade de escolha atribuída por lei à AP justifica-se, por, em
certas situações tratar-se de uma forma mais eficaz de assegurar a persecução
do Interesse Público. Como afirma o Professor João
Caupers, “A discricionaridade não resulta de um ‘esquecimento’ ou de uma
incapacidade de previsão do legislador, mas de uma opção deste: considerou que,
para melhor prosseguir um determinado interesse público, a administração
pública deveria poder escolher um de entre vários conteúdos decisionais –
aquele que, no entender do órgão do decisor, melhor prosseguisse tal
interesse.”. Do mesmo modo o Professor António Francisco de Sousa entende
estarmos perante de “uma ‘liberdade de escolha’, não por ausência de lei ou à
margem da lei, mas por atribuição da lei, ou seja, por vontade positiva da lei,
para a realização da justiça no caso concreto.”.
Concluir-se-á então que o
fundamento da discricionaridade será o facto de o legislador reconhecer “que
não lhe é possível prever antecipadamente todas as circunstâncias em que a
Administração vai ter de atuar, nem lhe é possível consequentemente dispor
acerca das melhores soluções para prosseguir o interesse público”, como o faz o
Professor Diogo Freitas do Amaral.
Neste
tipo de casos é, pois, imperativo, determinar se o órgão competente pode
escolher livremente qualquer uma das várias soluções conformes com o fim da lei.
O Professor Afonso
Queiró entende que o legislador concede à AP um poder de escolha e que,
consequentemente, a AP poderá tomar as decisões que entender dentro da
liberdade confinada (pois não é uma liberdade ilimitada).
Por sua vez, o Professor Diogo Freitas
do Amaral chega à conclusão de que a escolha é sobretudo condicionada
pelos princípios e regras gerais que vinculam a Administração Pública,
nomeadamente a igualdade, a proporcionalidade e a imparcialidade, art.266º/2 da
Constituição da República Portuguesa (CRP) procurando a melhor solução para o
interesse público, demonstrando assim que “o poder discricionário não é um
poder livre, dentro dos limites da lei, mas um poder jurídico delimitado por ela.”.
Refira-se
ainda que alguns dos aspetos fundamentais onde se pode manifestar a
discricionaridade da AP são: o momento da prática do ato; a decisão de praticar
ou não um certo ato administrativo; a determinação dos interesses e factos
relevantes para a decisão; a determinação do conteúdo concreto da decisão a
tomar; a forma a adotar para o ato administrativo; as formalidades a observar
na preparação ou na prática do ato administrativo; a fundamentação ou não da
decisão e a faculdade de apor ou não no ato administrativo condições, termos,
modos ou outras cláusulas acessórias.
No
que toca aos limites do poder discricionário, certa fação doutrinária tende a
verificar que a discricionaridade administrativa encontra-se limitada pelas
imposições do ordenamento jurídico (os limites externos) e, nas palavras do
Professor Colaço Antunes, “pelas
exigências do bem comum, da ética administrativa, da boa administração e de
todos os princípios que regem a Administração Pública (limites internos).”
Desta forma, e para o referido autor, os limites externos “são o vínculo posto
pela lei, isto é, o interesse público primário” e os limites internos “são
constituídos pelos direitos fundamentais e pelos princípios
jurídico-constitucionais que regem a atividade administrativa (discricionária).”
O Professor Diogo Freitas do Amaral, por seu turno, distingue
entre limites legais, os quais
resultam da própria lei, incluindo os Princípios Constitucionais (art.266º/2
CRP); e aqueles que decorram de autovinculação
pela própria AP, a qual define os condicionalismos que irá seguir na
atuação dos seus poderes.
A AP pode autovincular-se
de duas maneiras diversas.
Numa delas, a AP analisa
as circunstâncias do caso e adota a solução mais adequada, isto é, é em função
das circunstâncias que a AP acabará por tomar a sua decisão. Numa outra, pode a
AP elaborar normas genéricas, tendo em conta a sua experiência ou numa previsão
do que possa vir a acontecer e que, segundo o autor em questão “correspondem
sempre à ideia de que a Administração anuncia previamente os critérios de
acordo com os quais vai exercer o seu poder discricionário.”. Sendo assim, o
referido Professor conclui o seu raciocínio afirmando que a AP, tendo elaborado
normas próprias tem obrigação de as cumprir e não as cumprindo comete uma
ilegalidade. Apesar disso, o autor afirma que a Administração Pública não fica
impedida de mudar de critério, desde que o faça fundamentadamente, pois segundo
a ideia que o autor deixa: o interesse público é variável e, portanto, hoje uma
certa orientação pode ser a mais adequada, contudo, passado um tempo pode já
não ser e por isso ser necessária outra orientação de caráter diferente. Há, porém,
que ter em conta que existem limites à autovinculação da AP, pois esta não pode
autovincular-se com desrespeito do art.112º/5 CRP, isto é, não podem criar um
instrumento normativo autovinvulativo cuja função seja com eficácia externa
“integrar, modificar, suspender ou revogar” qualquer um dos instrumentos legais
que deem discricionaridade.
Considerando o que já foi
dito, é mister perceber que estes limites devem ser fielmente respeitados, pois
se inobservados, resvalam até à arbitrariedade. Como diz o Professor João Caupers, “A decisão discricionária
tem de assentar numa racionalidade própria, suscetível de algum tipo de
controle; não pode radicar num capricho (isso seria uma escolha arbitrária,
perfeitamente lícita quando feita por um cidadão, mas inaceitável se feita por
um órgão da Administração Pública).”
A discricionaridade
diferencia-se da arbitrariedade, por na primeira haver adequação do ato à
finalidade que a lei exige, e, na segunda, ao invés, estamos perante um
afastamento dos limites da lei ou uma decisão de acordo com pretensões
particulares. Quando o ato seja arbitrário, será também inválido.
Como diz o Professor Diogo Freitas
do Amaral “para além de só existir com fundamento na lei, o poder discricionário
só pode ser exercido por aqueles a quem a lei o atribuir, só pode ser exercido
para o fim com que a lei o confere, e deve ser exercido de acordo com certos
princípios jurídicos de atuação.”
Além do mais, releva
referir que o poder discricionário é
controlável jurisdicionalmente, além de também o ser administrativamente (quando controlado através de órgãos da AP). Quanto ao
controlo jurisdicional diz-nos o Professor Diogo
Freitas do Amaral que apesar de os
meios jurisdicionais não serem tão intensos como os que controlam os poderes
vinculados, são suficientemente veementes para se “poder falar num controlo jurisdicional consistente do
exercício do poder discricionário.”
Por fim, resta salientar
que existem hoje dúvidas quanto ao futuro da discricionaridade administrativa. De
facto, o Professor João Caupers
diz-nos que “O futuro da discricionaridade parece balizado por duas tendências
de sinal contrário: enquanto a intensidade da intervenção do Estado na vida
social e a crescente tecnicidade da ação administrativa são fatores que
favorecem a discricionaridade, já o aprofundamento e reforço das garantias dos
cidadãos recomendam o estreitamento do campo da discricionaridade, alargando as
vinculações e melhorando a eficácia dos princípios que condicionam o exercício
do poder administrativo.”
Sobre esta tensão,
subscrevemos as palavras do Professor Vieira
de Andrade, para quem o poder discricionário “não é um mal necessário
que deva ser reduzido ao mínimo, antes desempenha um papel positivo e indispensável,
quer para a realização do interesse público, quer para defesa adequada dos
interesses dos particulares.” É, pois, inegável que existem vantagens neste
poder de discricionaridade por parte da Administração Pública, visto que o
legislador não tem forma de prever todos os condicionalismos do caso concreto,
desde que o seu desenho permita que se salvaguarde sempre o cidadão, não se
reconduzindo o poder discricionário a
sinónimo de arbitrariedade, e sujeitando-o sempre a limites legais e até mesmo autovinculativos
que impeçam a AP de adotar uma atuação que não tenha como fim último a
persecução do interesse público.
Bibliografia:
- Amaral, Diogo Freitas do (2011), Curso de Direito Administrativo, II, 2.ª edição, Almedina, Coimbra;
- Caupers, João (2013), Introdução
ao Direito Administrativo, Âncora Editora, Lisboa;
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