terça-feira, 27 de março de 2018

O Poder Discricionário da Administração e os seus Limites



     

O Poder Discricionário da Administração e os seus Limites
    Ana Carolina Godinho Neves, aluna nº 56901 da FDUL
           
De forma a poder atingir os seus fins, a Administração Pública (doravante AP) é dotada de poderes, conferidos por lei; o que consubstancia uma decorrência natural do Princípio da Legalidade, segundo o qual, a AP deve prosseguir o interesse público em obediência à lei.
            Os poderes da AP são inerentes à atividade administrativa e de execução obrigatória sendo, portanto, irrenunciáveis. Estes são-lhe impostos a fim de que possa satisfazer as necessidades coletivas. Nessas condições, o poder tem para o agente público o significado de dever para com a sociedade, sendo considerado, por isso, um poder-dever de agir.
            Sublinhe-se, contudo, e como refere o Professor Diogo Freitas do Amaral, que “a lei não regula sempre do mesmo modo os atos a praticar pela Administração Pública: umas vezes concretiza tudo até ao pormenor, outras vezes não o faz, e prefere habilitar a Administração a determinar ela própria as escolhas a fazer. Ou, por outras palavras: a regulamentação legal da atividade administrativa umas vezes é precisa, outras vezes é imprecisa.”.   
Fala-se então de vinculação e discricionaridade.
Assim, quando a AP se encontre vinculada de forma precisa, terá apenas de executar o ato administrativo tal como prevê a lei, reconduzindo a sua atuação a um único comportamento possível.
A discricionariedade, por sua vez, e utilizando as palavras do Professor João Caupers “remete-nos para a ideia de escolha, de fazer uma coisa quando se poderia ter feito outra. Melhor, quando a lei permitiria que se tivesse feito outra.”. Isto é, quando a regulamentação legal da atividade administrativa é imprecisa, a AP, tendo em conta um juízo de valores, tem liberdade para escolher dentro de opções juridicamente válidas, aquela que melhor concretize o interesse público.
            Esta margem de liberdade de escolha atribuída por lei à AP justifica-se, por, em certas situações tratar-se de uma forma mais eficaz de assegurar a persecução do Interesse Público. Como afirma o Professor João Caupers, “A discricionaridade não resulta de um ‘esquecimento’ ou de uma incapacidade de previsão do legislador, mas de uma opção deste: considerou que, para melhor prosseguir um determinado interesse público, a administração pública deveria poder escolher um de entre vários conteúdos decisionais – aquele que, no entender do órgão do decisor, melhor prosseguisse tal interesse.”.  Do mesmo modo o Professor António Francisco de Sousa entende estarmos perante de “uma ‘liberdade de escolha’, não por ausência de lei ou à margem da lei, mas por atribuição da lei, ou seja, por vontade positiva da lei, para a realização da justiça no caso concreto.”.
Concluir-se-á então que o fundamento da discricionaridade será o facto de o legislador reconhecer “que não lhe é possível prever antecipadamente todas as circunstâncias em que a Administração vai ter de atuar, nem lhe é possível consequentemente dispor acerca das melhores soluções para prosseguir o interesse público”, como o faz o Professor Diogo Freitas do Amaral.
            Neste tipo de casos é, pois, imperativo, determinar se o órgão competente pode escolher livremente qualquer uma das várias soluções conformes com o fim da lei.
 O Professor Afonso Queiró entende que o legislador concede à AP um poder de escolha e que, consequentemente, a AP poderá tomar as decisões que entender dentro da liberdade confinada (pois não é uma liberdade ilimitada).
Por sua vez, o Professor Diogo Freitas do Amaral chega à conclusão de que a escolha é sobretudo condicionada pelos princípios e regras gerais que vinculam a Administração Pública, nomeadamente a igualdade, a proporcionalidade e a imparcialidade, art.266º/2 da Constituição da República Portuguesa (CRP) procurando a melhor solução para o interesse público, demonstrando assim que “o poder discricionário não é um poder livre, dentro dos limites da lei, mas um poder jurídico delimitado por ela.”. 
            Refira-se ainda que alguns dos aspetos fundamentais onde se pode manifestar a discricionaridade da AP são: o momento da prática do ato; a decisão de praticar ou não um certo ato administrativo; a determinação dos interesses e factos relevantes para a decisão; a determinação do conteúdo concreto da decisão a tomar; a forma a adotar para o ato administrativo; as formalidades a observar na preparação ou na prática do ato administrativo; a fundamentação ou não da decisão e a faculdade de apor ou não no ato administrativo condições, termos, modos ou outras cláusulas acessórias.
            No que toca aos limites do poder discricionário, certa fação doutrinária tende a verificar que a discricionaridade administrativa encontra-se limitada pelas imposições do ordenamento jurídico (os limites externos) e, nas palavras do Professor Colaço Antunes, “pelas exigências do bem comum, da ética administrativa, da boa administração e de todos os princípios que regem a Administração Pública (limites internos).” Desta forma, e para o referido autor, os limites externos “são o vínculo posto pela lei, isto é, o interesse público primário” e os limites internos “são constituídos pelos direitos fundamentais e pelos princípios jurídico-constitucionais que regem a atividade administrativa (discricionária).”
O Professor Diogo Freitas do Amaral, por seu turno, distingue entre limites legais, os quais resultam da própria lei, incluindo os Princípios Constitucionais (art.266º/2 CRP); e aqueles que decorram de autovinculação pela própria AP, a qual define os condicionalismos que irá seguir na atuação dos seus poderes.
A AP pode autovincular-se de duas maneiras diversas.
Numa delas, a AP analisa as circunstâncias do caso e adota a solução mais adequada, isto é, é em função das circunstâncias que a AP acabará por tomar a sua decisão. Numa outra, pode a AP elaborar normas genéricas, tendo em conta a sua experiência ou numa previsão do que possa vir a acontecer e que, segundo o autor em questão “correspondem sempre à ideia de que a Administração anuncia previamente os critérios de acordo com os quais vai exercer o seu poder discricionário.”. Sendo assim, o referido Professor conclui o seu raciocínio afirmando que a AP, tendo elaborado normas próprias tem obrigação de as cumprir e não as cumprindo comete uma ilegalidade. Apesar disso, o autor afirma que a Administração Pública não fica impedida de mudar de critério, desde que o faça fundamentadamente, pois segundo a ideia que o autor deixa: o interesse público é variável e, portanto, hoje uma certa orientação pode ser a mais adequada, contudo, passado um tempo pode já não ser e por isso ser necessária outra orientação de caráter diferente. Há, porém, que ter em conta que existem limites à autovinculação da AP, pois esta não pode autovincular-se com desrespeito do art.112º/5 CRP, isto é, não podem criar um instrumento normativo autovinvulativo cuja função seja com eficácia externa “integrar, modificar, suspender ou revogar” qualquer um dos instrumentos legais que deem discricionaridade.
Considerando o que já foi dito, é mister perceber que estes limites devem ser fielmente respeitados, pois se inobservados, resvalam até à arbitrariedade. Como diz o Professor João Caupers, “A decisão discricionária tem de assentar numa racionalidade própria, suscetível de algum tipo de controle; não pode radicar num capricho (isso seria uma escolha arbitrária, perfeitamente lícita quando feita por um cidadão, mas inaceitável se feita por um órgão da Administração Pública).”
A discricionaridade diferencia-se da arbitrariedade, por na primeira haver adequação do ato à finalidade que a lei exige, e, na segunda, ao invés, estamos perante um afastamento dos limites da lei ou uma decisão de acordo com pretensões particulares. Quando o ato seja arbitrário, será também inválido.
Como diz o Professor Diogo Freitas do Amaral “para além de só existir com fundamento na lei, o poder discricionário só pode ser exercido por aqueles a quem a lei o atribuir, só pode ser exercido para o fim com que a lei o confere, e deve ser exercido de acordo com certos princípios jurídicos de atuação.”
Além do mais, releva referir que o poder discricionário é controlável jurisdicionalmente, além de também o ser administrativamente (quando controlado através de órgãos da AP). Quanto ao controlo jurisdicional diz-nos o Professor Diogo Freitas do Amaral que apesar de os meios jurisdicionais não serem tão intensos como os que controlam os poderes vinculados, são suficientemente veementes para se “poder falar num controlo jurisdicional consistente do exercício do poder discricionário.”
Por fim, resta salientar que existem hoje dúvidas quanto ao futuro da discricionaridade administrativa. De facto, o Professor João Caupers diz-nos que “O futuro da discricionaridade parece balizado por duas tendências de sinal contrário: enquanto a intensidade da intervenção do Estado na vida social e a crescente tecnicidade da ação administrativa são fatores que favorecem a discricionaridade, já o aprofundamento e reforço das garantias dos cidadãos recomendam o estreitamento do campo da discricionaridade, alargando as vinculações e melhorando a eficácia dos princípios que condicionam o exercício do poder administrativo.”
Sobre esta tensão, subscrevemos as palavras do Professor Vieira de Andrade, para quem o poder discricionário “não é um mal necessário que deva ser reduzido ao mínimo, antes desempenha um papel positivo e indispensável, quer para a realização do interesse público, quer para defesa adequada dos interesses dos particulares.” É, pois, inegável que existem vantagens neste poder de discricionaridade por parte da Administração Pública, visto que o legislador não tem forma de prever todos os condicionalismos do caso concreto, desde que o seu desenho permita que se salvaguarde sempre o cidadão, não se reconduzindo o poder  discricionário a sinónimo de arbitrariedade, e sujeitando-o sempre a  limites legais e até mesmo autovinculativos que impeçam a AP de adotar uma atuação que não tenha como fim último a persecução do interesse público.


Bibliografia:
- Amaral, Diogo Freitas do (2011), Curso de Direito Administrativo, II, 2.ª edição, Almedina, Coimbra;
- Caupers, João (2013), Introdução ao Direito Administrativo, Âncora Editora, Lisboa;

- Fernandes, Karen Ilanit Vernier Nunes (2015), A Discricionariedade Administrativa face ao Princípio da Boa Administração, Tese de Mestrado em Direito Ciências Jurídico-Administrativas da Faculdade de Direito da Universidade do Porto; 




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