A sequela doutrinária em torno da taxatividade do artigo 161º/2 do CPA, respeitante aos vícios para os quais a lei prevê a nulidade
Os vícios que recaem
sobre os atos administrativos, isto é, as desconformidades entre norma e
atuação jurídicas, conduzem a desvalores. O desvalor é a censura sobre a
aptidão do ato para produzir os seus efeitos.
O Código de Procedimento
Administrativo (de agora adiante CPA) consagra expressamente duas categorias de
desvalores: a nulidade e a anulabilidade. A primeira questão que se coloca é a
de saber se nos basta uma realidade dicotómica (nulidade/anulabilidade) ou se é
preciso criar novas categorias.
Alguns autores consideram
que para além destes dois tipos de invalidade existem, ainda, a irregularidade
e a inexistência do ato. Entre esses autores não se encontra o Professor Vasco
Pereira da Silva, que adota a lógica binária de invalidades (nulidade e
anulabilidade) por considerar que estas sozinhas resolvem todos os problemas do
ordenamento português.
Importa, desde logo,
explicar sucintamente as características de regime que permitem diferenciar
estas duas figuras.
A nulidade é o desvalor
mais grave de invalidade do ato administrativo. O ato nulo não produz quaisquer
efeitos, independentemente da declaração de nulidade (artigo 162º/1 do CPA). É
oposto do que sucede perante os atos anuláveis, que produzem efeitos até à sua
anulação com eficácia retroativa (artigo 163º/2 do CPA). Por este motivo, a
anulabilidade é considerada um desvalor menos grave, em comparação com a
nulidade.
A doutrina,
designadamente, os Professores Marcello Caetano, Freitas do Amaral, Marcelo
Rebelo de Sousa e Mário Aroso de Almeida, têm vindo a considerar que a
anulabilidade é o regime-regra de invalidade Direito Administrativo, na medida
em que o artigo 163º/1 do CPA dispõe: “são
anuláveis os atos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou
outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra
sanção”. A nulidade seria assim uma exceção a esta regra pois só é
aplicável quando “a lei comine
expressamente essa forma de invalidade” (artigo 161º/1 do CPA).
Este entendimento parte
do pressuposto segundo o qual o artigo 161º/2 do CPA procede a uma enumeração
exaustiva dos vícios aos quais é aplicável o desvalor da nulidade.
Sobre esta matéria
existe, porém, uma sequela doutrinária.
O artigo 133º do antigo CPA continha
o seguinte teor: “são nulos os atos para
os quais a lei culmine expressamente essa forma de ilegalidade”, mas
acrescentava “são nulos todos os casos
que correspondam à falta dos elementos essenciais do ato”.
Na opinião do Professor
Mário Aroso de Almeida, ao
retirar esta cláusula aberta, o CPA 2015 (artigo 161º/2) optou por fechar o
elenco das causas de nulidade e impediu a invocação de causa de “nulidade por
natureza”.
Para o Professor, “esta regra é justificável por razões de
segurança jurídica, associadas à exigência de alguma previsibilidade quanto à
estabilidade das definições jurídicas introduzidas no exercício de poderes
jurídico-administrativos”. Na opinião do Professor essas razões exigem “clareza e previsibilidade na determinação
dos casos em que excecionalmente os atos ilegais são considerados nulos”.
O Professor Mário Aroso de Almeida
entende que a previsão segundo a qual, no anterior CPA, o legislador
considerava os atos nulos quando lhes faltasse qualquer dos elementos
essenciais, se afigurava infeliz, na medida em que tornava problemático o
preenchimento do conceito de “elementos essenciais”.
Por último, o Professor invoca o
argumento segundo o qual a jurisprudência administrativa, apesar da previsão do
anterior artigo 133º/1, sempre se pautou pela adoção de uma postura muito
restritiva no que respeita ao reconhecimento de causas de nulidade que não
sejam objeto de previsão legal expressa.
O Professor Vasco Pereira
da Silva vem, todavia, defender que a ideia segundo a qual “a regra é a
anulabilidade, tratando-se a nulidade de uma exceção” esta incorreta. Isto
porque o Professor entende que o elenco de vícios plasmado no artigo 161º/2 do
CPA é meramente ilustrativo, e não taxativo.
A favor da posição por si
perfilhada, o Professor apresenta vários argumentos.
Em primeiro lugar temos o
argumento literal: o artigo 161º/2 refere “designadamente”,
dando a entender que, para além dos vícios aí plasmados, existem outros que
pela gravidade da lesão se devam também ser considerados nulos.
Em segundo lugar, o
Professor alega que a enumeração do artigo 161º/2 é exemplificativa porque o
legislador quis somente dar a conhecer o critério segundo o qual decide pela
nulidade do ato. E o critério por si utilizado é o da gravidade da lesão.
E isto é fácil de
perceber. De entre os vários vícios do ato (usurpação de poderes;
incompetência; violação de lei e desvio de poder), apenas um deles produz
sempre a nulidade: a usurpação de poderes (artigo 161º/2, alínea a). Todos os restantes serão nulos ou
anuláveis em função da gravidade da lesão.
Assim, de entre o vício
de incompetência, somente a incompetência absoluta deverá ser sancionada com
nulidade (artigo 161º/2, alínea b), a
incompetência relativa terá como desvalor a anulabilidade (artigo 163º/1). De
entre o vício de violação de lei, somente a violação de direitos fundamentais
deve ser sancionada com nulidade (artigo 161º/2, alínea d). E, por fim, só o desvio de poder para fins de interesse privado
sofre o desvalor de nulidade; o desvio de poder para fins de interesse público
será apenas anulável (artigo 163º/1).
O critério é sempre o da
gravidade da lesão, correspondendo a nulidade ao desvalor atribuído às
ilegalidades mais graves e a anulabilidade o desvalor atribuído às ilegalidades
menos graves.
De acordo com o Professor
Vasco Pereira da Silva, não faz sentido dizer que há uma regra. É preciso
analisar, caso a caso, a gravidade da lesão para saber o desvalor aplicável.
Isto naturalmente, nos casos em que a lei não definir expressamente que o ato é
nulo.
É ainda de referir que o
Professor considera que a reforma do CPA em nada alterou a possibilidade de
invocar as situações de “nulidade por natureza”.
A nulidade por natureza, assim
apelidada por Freitas do Amaral, consistiria nos vícios equiparáveis àqueles
para as quais o legislador consagrou a nulidade. Tratar-se-iam de vícios cuja
previsibilidade pelo legislador não é necessária pois já decorreria do critério
de gravidade que seriam desconsiderados com a nulidade.
Ora, se, através da utilização do
conceito “designadamente”, o
legislador mantém uma cláusula aberta no artigo 161º/2, é sempre possível
considerar “por natureza” nulos determinados atos.
Aquando da alteração do CPA, alguns
autores, nomeadamente, o Professor Fausto Quadros, questionaram-se pela
necessidade de introduzir um conceito de inexistência jurídica. Isto porque o
antigo CPA determinava que eram nulos os atos que tivessem em falta “elementos
essenciais”, logo impedia a existência de um desvalor de inexistência.
Na opinião do
Professor Vasco Pereira da Silva, estando a nulidade prevista como uma cláusula
aberta, não há necessidade de recorrer a um conceito de inexistência.
Bibliografia:
AROSO ALMEIDA, Mário, Teoria Geral do Direito
Administrativo, 3ª Edição, Almedina, 2016;
PEREIRA DA SILVA, Vasco, Em busca do ato administrativo perdido, Almedina,
Coimbra, 1996;
Ana Catarina Fonseca Louro, aluna nº
57110, subturma 10B
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