A importância da Audiência dos interessados e a questão doutrinária relativa ao direito em causa
Antes de mais, importa dizer que os
atos e regulamentos administrativos são o produto de um procedimento, isto é,
de uma “sucessão ordenada de atos e formalidades”
destinados à tomada de uma decisão, tal como dispõe o artigo 1º/1 do Código de
Procedimento Administrativo (de agora adiante, CPA).
A audiência dos interessados consiste
numa das fases do procedimento administrativo. Cabe aqui, essencialmente,
analisar a sua relevância ou o porquê da sua consagração e ainda abordar a
sequela doutrinária que discute a natureza do direito em causa.
A audiência dos interessados é o
momento formal no qual os interessados participam no procedimento
administrativo. Esta ocorre, geralmente, na parte final da instrução, depois de
estarem apurados os elementos de facto e de Direito relevantes para a decisão
final.
Nos termos do artigo 121º/1, “os interessados têm o direito de ser ouvidos
no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados,
nomeadamente, sobre o sentido provável desta”. Deste modo, a administração deve
ouvir os particulares e estes podem pronunciar-se sobre qualquer questão
relevante para o procedimento, imediatamente antes da tomada da decisão. Tal
como refere o preceito, para a audiência desempenhar cabalmente a sua função,
têm os particulares de ser informados sobre o sentido provável dessa decisão,
e, ainda sobre os seus fundamentos.
O CPA introduziu, por força desta disposição,
a obrigatoriedade de existência de um momento formal de participação dos
interessados no procedimento. Contudo, esta solução nem sempre esteve
consagrada.
Tradicionalmente, este direito
existia somente nos procedimentos disciplinares ou sancionatórios sob a regra
de que ninguém podia ser condenado sem ter sido ouvido. Até à entrada em vigor
do CPA, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) só reconhecia a existência do
direito de audiência e defesa nestes procedimentos.
No entendimento do Professor Freitas
do Amaral, a passagem de um procedimento que não incluía a fase da audiência
dos interessados para um procedimento que a tornou obrigatória foi uma “pequena-grande revolução”. A transformação
foi de uma administração não participada – em que o particular não sabia se o seu pedido
e as suas razões eram convenientemente estudados e a decisão final chegava
sempre como uma total surpresa – para uma administração da qual o particular
passa a ser seu associado na tomada de decisões.
Tal como refere o Professor Freitas
do Amaral, os trâmites do procedimento passam de “requerimento, informação dos serviços e decisão final” passa a “requerimento, informação dos serviços,
audiência dos interessados e decisão final”.
A audiência dos interessados surge
como uma concretização do princípio da participação dos interessados na
formação das decisões que lhes digam respeito, que decorre do artigo 267º/5 da
Constituição da República Portuguesa (CRP).
A audiência dos interessados tem,
assim, como funções: evitar as decisões surpresa, das quais os particulares não
possam já “defender-se”, e facultar aos particulares uma oportunidade para
fazerem valer os seus argumentos contra a Administração, tentando de algum modo
influenciar o sentido de uma decisão de indeferimento ou de deferimento parcial.
Por outro lado, a audiência ajuda a administração a decidir mais eficazmente e
com a certeza de que prossegue o interesse público de modo adequado e em
conformidade com o bloco de legalidade.
Está em causa também o princípio da
colaboração da Administração com os particulares, previsto nos artigos 267º/1 e
7º da CRP.
Os Professores Freitas do Amaral,
João Coupers, João Martins Claro, João Raposo, Pedro Siza Vieira e Vasco
Pereira da Silva referem, ainda, numa anotação ao artigo 8º do CPA, que “a participação dos particulares no processo
de tomada de decisões administrativas apresenta uma função legitimadora,
característica de uma Administração pública democrática, permitindo aos
interessados uma proteção dos seus direitos e interesses legalmente em face da
administração e conduzindo a um aumento da eficácia da atividade administrativa”.
Para o Professor Vasco Pereira da Silva,
a participação dos interessados na formação de decisões que lhes dizem respeito
é vista, em termos predominantemente subjetivistas, enquanto instrumento de
garantia das posições jurídicas dos privados perante a Administração.
Apesar de obrigatória, a audiência
prévia pode ser dispensada em circunstâncias excecionais, que são as previstas
no artigo 124º do CPA. No entender dos Professores Marcelo Rebelo de Sousa e
André Salgado, dado ser a audiência dos interessados um instituto concretizador
de um princípio constitucional, estas circunstâncias limitadoras da sua
realização devem ser interpretadas restritivamente.
Destarte, dada a importância que
demonstra ter, o que acontece se for violado o direito à audiência dos
interessados, nos casos em que esta é obrigatória?
Segundo os Professores Marcelo Rebelo
de Sousa e André Salgado, “a audiência dos interessados constitui uma
formalidade essencial cuja preterição acarreta vício de forma e a invalidade do
ato administrativo que consubstancie a decisão final”. A questão está em saber
que tipo de invalidade está em causa.
A doutrina não tem sido unânime
quanto a este ponto. Podemos dividir os autores em dois blocos. De um lado
encontramos aqueles que consideram que o direito à audiência prévia é um
verdadeiro direito fundamental, pelo que, a sua violação produzirá a nulidade
do ato administrativo (artigo 161º/2, alínea d do CPA). De outro lado deparamo-nos com os autores que entendem
que a violação deste direito, por não ser fundamental, consubstancia uma mera
irregularidade no procedimento, pelo que a sanção será a anulabilidade (artigo
163º/1 do CPA).
A favor da segunda tese está Freitas
do Amaral, com o apoio do Supremo Tribunal Administrativo. Segundo o Professor,
“direitos fundamentais são apenas os
direitos inerentes à dignidade essencial da pessoa humana”. Para além
disso, o Professor invoca um outro argumento: se a jurisprudência tem
entendido, nos casos de procedimentos disciplinar, que a falta de audiência do
arguido não gera a nulidade, mas antes a anulabilidade, não faz sentido que em
casos que não são tão graves como este se adote a sanção da nulidade.
Defensores do direito à audiência
prévia como direito fundamental são os Professores Vasco Pereira da Silva, Marcelo
Rebelo de Sousa e André Salgado.
O Professor Vasco Pereira da Silva
começa por invocar o princípio da não tipicidade ou da cláusula aberta, em
matéria de direitos fundamentais (artigo 16º da CRP), para explicar que a
posição jurídica de vantagem de um cidadão perante a administração é de
qualificar como direito fundamental. De seguida, refuta a ideia segundo a qual
direito à audiência prévia não é inerente à dignidade humana. Por fim conclui
sublinhando que mesmo que se considerasse que o direito à audiência não era
fundamental, todas as decisões administrativas que afetem direitos fundamentais
devam ser tomadas com base num procedimento participado. Assim sendo, “quer pela via de classificação do direito à audiência
como um direito fundamental, quer pela via dos direitos fundamentais afetados
pelas decisões administrativas terem de resultar de um procedimento
participado, chegamos à conclusão de que uma decisão administrativa praticada
sem audiência dos particulares viola o conteúdo essencial de um direito
fundamental pelo que deve ser considerada nula (artigo 161º/2, alínea d do CPA)”.
Os Professores Marcelo Rebelo de
Sousa e André Salgado, consideram que se pode ainda chegar à nulidade por uma outra
via que é a da consideração do direito à audiência como uma formalidade
essencial do procedimento e um elemento essencial do ato administrativo.
O Professor Mário Aroso de Almeida
defende uma posição intermédia.
A posição perfilhada pelo Professor é
a de que o direito à audiência dos interessados só é fundamental nos casos em
que estejam em causa procedimentos disciplinares/ sancionatórios, por força dos
artigos 269º/3 e 32º da CRP. Nos restantes casos, não se deve considerar que
este direito tenha natureza de direito fundamental. Conforme o seu entender, “é certo que este direito é uma (…) das
concretizações do imperativo (…) de assegurar a participação dos interessados
na formação das decisões que lhes digam respeito. Afigura-se, no entanto, que
este preceito constitucional tem (…) por objeto regular a estrutura
organizatória da Administração Pública, pelo dele não recorre um direito à
participação procedimental (…) passível de ser invocado (…)”.
Em face das posições destacadas,
penso que a razão está com o Professor Mário Aroso de Almeida. No meu
entendimento, é naturalmente obrigatória, sob pena de nulidade, a audiência dos
particulares em procedimento sancionatório; contudo, já não me parece
justificativa a qualificação como direito fundamental da generalidade das
restantes situações de direito à audiência.
Bibliografia
Rebelo de Sousa, Marcelo e Salgado de
Matos, André, Direito Administrativo
Geral, Atividade Administrativa, Tomo
III, 2ª Edição, Dom Quixote, 2009, páginas 127 a 134;
Amaral, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo II, Almedina, Coimbra, 2001, páginas 316 a 323;
Pereira da Silva, Vasco, Em Busca do Ato Administrativo Perdido, Almedina,
Coimbra, 1996, páginas 424 a 432;
Aroso de Almeida, Mário, Teoria Geral
do Direito Administrativo, 3ª Edição, Almedina, 2016, páginas 114 a 124;
Ana Catarina Fonseca Louro, aluna nº
57110, subturma 10B
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