Antes de iniciar a análise sobre a figura do deferimento tácito, importa referir o princípio da decisão enquanto um dos princípios mais importantes e essenciais que integram a actuação administrativa. Também conhecido como o dever de decidir da Administração Pública, o princípio da decisão encontra-se disposto no artigo 13º do Código de Procedimento Administrativo, o qual impõe aos órgãos da Administração Pública o dever de se pronunciarem sobre todas as matérias, pertencentes à competência dos mesmos. Este dever é exercido com a condição de que os assuntos lhes sejam apresentados pelos particulares em defesa dos seus interesses, não sendo necessário que os órgãos obedeçam a este princípio procedimentalmente sobre todas as petições, uma vez que tal seria irrealizável.
Por conseguinte, atendendo à posição dos indivíduos nas relações jurídicas administrativas na qualidade de sujeitos de direito e à prossecução do interesse público, determinada no artigo 266º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, a Administração encontra-se vinculada a cumprir o dever de decisão devendo, independentemente de qual seja a sua escolha, pronunciar-se obrigatoriamente nesse âmbito. Porém, a decisão apresenta-se sujeita a prazos, regidos no artigo 128º do CPA, sendo o prazo-regra para a sua emissão 90 dias (art. 128º, nº1 do CPA). Na eventualidade de surgirem certos eventos especiais ou anormais, o prazo poderá ser alargado, através da autorização do órgão competente para a decisão final. Para além disso, perante procedimentos de iniciativa oficiosa que possam traduzir-se numa decisão que prejudique os interessados através de efeitos desfavoráveis para os mesmos, estes procedimentos caducam findo um prazo de 180 dias na ausência de decisão (art. 128º, nº6 do CPA). Segundo o artigo 13º, nº2 do CPA, a única excepção a este princípio, tornando a sua exigência inexistente, verifica-se caso, num prazo menor a dois anos, a Administração Pública havia já praticado um acto administrativo sobre o novo pedido, considerando que este teria sido formulado pelo mesmo particular e exactamente com os mesmos fundamentos.
Desta forma, e segundo o disposto no artigo 129º do CPA, se a Administração Pública se mantiver em silêncio no decorrer e após o prazo legalmente estabelecido, ou seja, se incumprir o dever de decisão, existe uma omissão legal. Com a reforma do contencioso administrativo em 2004, uma das consequências possíveis, denominada indeferimento tácito (acto tácito negativo), desapareceu. Contudo, os seus efeitos continuam a ser alcançáveis através do contencioso administrativo, no qual se destaca a ação administrativa especial de condenação à prática do ato devido. Assim sendo, passaram a existir três tipos seguintes de consequências aplicáveis às omissões legais da Administração:
lRecurso aos meios de tutela administrativa, como por exemplo a figura da reclamação (art.184º, nº1, b) do CPA) ou o recurso hierárquico (art.193º, nº2 e o 197º, nº4 do CPA);
lRecurso aos meios de tutela jurisdicional;
lDeferimento tácito da pretensão formulada.
Relativamente a este último possível desfecho, segundo o professor João Tiago Silveira, procura assegurar a posição jurídica do particular, dado que o sistema jurídico português julga ser inadmissível que o silêncio da Administração Pública possa impedir ou danificar o desenvolvimento das suas pretensões. Tal como fora já referido, com a extinção do indeferimento tácito, o instituto do deferimento tácito tornou-se na única modalidade de um acto tácito existente no Direito Administrativo português, podendo este resultar, não só do silêncio decisório da Administração, mas também da ausência de notificação da decisão final para garantir a eficácia e a segurança jurídica. Acrescenta-se ainda que, actualmente, só existirá deferimento tácito, em oposição ao incumprimento, quando se determinar que a ausência de notificação da decisão final dentro do prazo legal tem o valor de deferimento através de uma legislação ou regulamentação (art. 130º do CPA). Deste modo, deixou de se presumir uma vontade tácita negativa, verificando-se antes uma valorização positiva à ausência de uma resposta.
No entender do professor Freitas do Amaral, importa verificar as seguintes condições de produção do acto tácito:
- O órgão deve ser legalmente solicitado por um interessado a pronunciar-se num caso concreto (art. 130º, nº1 do CPA);
- O órgão deve ter, sobre a matéria em causa, o dever legal de decidir através de um acto administrativo (art. 13.º, n.º 2);
- O prazo legal deverá decorrer sem que haja sido tomada uma decisão expressa sobre o pedido(art. 87º, 128º e 130º, nº2 e 3 do NCPA);
- A lei (ou um regulamento) deve atribuir ao silêncio da Administração, durante o prazo, o significado jurídico de deferimento.
Todavia, para o professor Vasco Pereira da Silva, a existência do acto tácito de deferimento não faz qualquer tipo de sentido, pois apenas a emissão de um “sim” explícito, enquanto resposta da Administração Pública, poderá proteger os particulares, ao acautelar valores de segurança jurídica.
Não obstante, é essencial distinguir o acto tácito da comunicação prévia com prazo, regulada no artigo 134º, nº3 do CPA, que acaba por ser uma alternativa à atribuição de um valor positivo ao silêncio da Administração. Para o professor João Miranda, o deferimento tácito não se deverá confundir com a comunicação prévia (artigo 134º, nº3 do CPA). Enquanto no acto tácito o particular recebe uma habilitação administrativa propriamente dita, na comunicação prévia não se actua ao abrigo de um acto administrativo, sendo uma mera comunicação de que se vai agir.
Cabe ainda realizar uma breve referência à divergência doutrinal existente quanto à natureza jurídica do deferimento tácito, sendo que esta é abordada de forma divergente em cinco posições:
1) Em primeiro lugar, existem autores, como o professor Marcello Caetano, que defendem que o deferimento tácito trata-se de uma técnica legal de interpretação do silêncio. Por outras palavras, este instituto originaria um acto administrativo ao recorrer a uma interpretação da lei devido à ausência da vontade. No entanto, muitos críticos consideram difícil aceitar a interpretação de uma vontade inexistente, não existindo, assim, uma verdadeira tarefa interpretativa.
2) Em segundo lugar, há autores italianos que consideram que a lei legitima o particular a agir perante o silêncio da Administração Pública, isto é, a lei visa, não interpretar, mas antes suprir a ausência da vontade. Porém, esta tese não esclarece qual a natureza do resultado da intervenção da lei.
3) Em terceiro lugar, há quem acredite que o deferimento tácito é uma presunção, originada pela lei, da vontade administrativa. Todavia, a presunção parte de factos reais que permitem chegar a uma determinada conclusão (art. 349º do Código Civil), ao invés de circunstâncias e pressupostos dos quais se desconhece a sua veracidade.
4) Em quarto lugar, outros autores, como o professor João Tiago Silveira, o professor Vasco Pereira da Silva e o professor Tiago Macieirinha, creem estar perante um acto ficcional, visto que é o produto da inexistência de uma vontade, devendo ser-lhe aplicado o regime jurídico de outra matéria, excepto o regime dos actos administrativos, pois este conduziria à sua ilegalidade. Esta teoria é criticada pelo facto de existirem situações em que o silêncio não resulta de uma recusa de decidir, mas antes da negligência da Administração.
5) Por fim, a maior parte da doutrina defende que o deferimento tácito possui a natureza de um acto administrativo. Não obstante, é difícil obter unidade no âmbito desta posição, tendo em conta que vários ordenamentos jurídicos, como o português, valorizam o elemento da vontade como essencial para a definição de acto administrativo, sendo este o caso do professor Sérvulo Correia. Face a esta questão, parte da doutrina, a qual integra o professor Rogério Soares, desvaloriza o elemento da vontade pois recusa a equiparação a um negócio jurídico.
Bibliografia
AMARAL, Diogo Freitas do. Curso De Direito Administrativo - Volume II. Livraria Almedina, 2016.
CORREIA, José Manuel Sérvulo. O Incumprimento Do Dever De Decidir. Coimbra Editora, 2006.
SILVEIRA, João Tiago Valente Almeida da. O Deferimento Tácito. Tese de Mestrado, 2000
SOUSA, Marcelo Rebelo de. Direito Administrativo Geral - Tomo III. Dom Quixote, 2009.
Carolina Fernandes Duarte, Nº57006
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