quarta-feira, 23 de maio de 2018

Teoria dos Vícios do Ato Administrativo


De acordo com o Professor João Caupers, a invalidade do ato administrativo consiste no juízo de desvalor emitido sobre ele, em resultado da sua desconformidade com a ordem jurídica. As duas causas mais comuns da invalidade são a ilegalidade e os vícios da vontade.

Segundo o Professor Diogo Freitas do Amaral, a ilegalidade do ato administrativo pode assumir várias formas. Essas formas chamam-se vícios do ato administrativo.

A teoria dos vícios do ato administrativo surge com o direito administrativo francês do século XIX, passando de seguida para outros países, como para Portugal. Esta teoria vinha introduzir uma orientação de estabelecer uma tipologia legal dos vícios do ato administrativo, nomeadamente pela conveniência de facilitar o recurso dos particulares aos tribunais administrativos.

Nessa época, o único mecanismo de reação dos particulares contra os atos administrativos ilegais era o recurso por excesso de poder. A partir do conceito de excesso de poder foram progressivamente sendo autonomizados os vários vícios do ato administrativo.

Até aos anos 30 do século XX, a doutrina e a legislação portuguesa referiam-se em geral à incompetência, ao excesso de poder e à violação de lei ou ofensa de direitos adquiridos, englobando todas as formas de ilegalidade de que os atos podiam padecer numa fórmula unitária.

Só a partir desta altura é que, sobretudo por influência do Professor Marcello Caetano, passou a falar-se verdadeiramente de uma construção neste domínio, que distinguia cinco vícios: a usurpação de poder, a incompetência, o vício de forma, o desvio de poder e a violação de lei. Os tribunais portugueses começaram a especificar e definir os diversos vícios.

Aquilo que inicialmente era apenas uma construção doutrinal passou a ter valor normativo em 1956, quando o art. 15º/1 da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (LOSTA), que esteve em vigor até 2003, introduziu pela primeira vez no Direito português uma enumeração legal de vícios do ato administrativo correspondente aos cinco vícios identificados pela doutrina.  

Esta enumeração permitiu à teoria dos vícios do ato administrativo ter um grande peso na teoria do ato administrativo em geral, quer em termos substantivos, quer em termos processuais.  

Do ponto de vista substantivo, concluía-se que a enumeração era fechada, o que deixava de fora outras formas de ilegalidade que não se reconduzissem de forma clara a cada um deles.

Do ponto de vista processual, considerava-se que a não alegação, pelo recorrente, do vício de que padecia o ato impugnado, na petição inicial, precludia a possibilidade da sua alegação num futuro recurso contencioso.

A tendência atual é a de relativizar a teoria dos vícios do ato administrativo, motivada especialmente pela entrada em vigor do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), que levou à revogação do art. 15º/1 da LOSTA. Como tal, já não existe na ordem jurídica qualquer enumeração legal dos vícios do ato administrativo.

Entende-se, em termos substantivos, que os cinco vícios do ato administrativo doutrinalmente reconhecidos não correspondem a um elenco taxativo de formas de ilegalidade do ato administrativo.

Em termos processuais, deixou de ter qualquer fundamento a exigência de alegação dos vícios dos atos administrativos objeto de impugnação perante a administração ou perante os tribunais. 

Ora, existem vícios orgânicos, relativos ao autor do ato administrativo, como a usurpação de poderes e a incompetência; vícios formais, relativos à forma do ato administrativo, como o vício de forma; e vícios materiais, relativos ao objeto, ao conteúdo ou aos motivos do ato, como o desvio de poder e a violação de lei.

A usurpação de poderes é o vício do ato administrativo pelo qual um órgão da Administração pública exerce uma outra função do Estado que não a função administrativa, sem que para isso esteja habilitado, saindo deste modo do âmbito do poder administrativo. Trata-se de uma violação do princípio da separação de poderes (art. 2º e art. 111º da Constituição da República Portuguesa). Este vício comporta três modalidades: a usurpação do poder legislativo, a usurpação do poder moderador (isto é, do poder presidencial) e a usurpação do poder judicial.

A incompetência existe quando um órgão da Administração pratica um ato administrativo incluído nas atribuições ou na competência de outro órgão administrativo, sem que qualquer norma legal lhe atribua competência para tal. A incompetência pode ser absoluta ou relativa. Na incompetência absoluta, o vício do ato verifica-se quando um órgão administrativo pratica um ato fora das atribuições da pessoa coletiva a que pertence; já na incompetência relativa, o vício do ato verifica-se quando um órgão administrativo pratica um ato que está fora da sua competência, mas que pertence à competência de outro órgão da mesma pessoa coletiva. Podem distinguir-se quatro modalidades: a incompetência em razão de matéria, em razão de hierarquia, em razão do lugar e em razão do tempo.

O vício de forma afeta os atos administrativos praticados com desrespeito dos seus requisitos objetivos formais de legalidade. Existe em duas modalidades: o vício de forma por preterição da forma legal e o vício de forma por preterição de formalidades essenciais. A validade de um ato administrativo afere-se sempre pela conformidade desse ato com o ordenamento jurídico no momento em que ele é praticado. Se a preterição das formalidades ocorrer depois de o ato ser praticado, este não fica inválido, já que não há repercussões para trás.

O desvio de poder corresponde ao vício que afeta o ato administrativo praticado no exercício de poderes discricionários quando estes hajam sido usados pelo órgão competente com fim diverso daquele para que a lei os conferiu ou por motivos determinantes que não coincidam com o fim visado pela lei que conferiu tais poderes. Este vício pode assumir duas formas: o desvio de poder por motivo de interesse privado e o desvio de poder por motivo de interesse público. Este vício é típico dos atos praticados ao abrigo de margem de livre decisão – liberdade que a lei confere ao órgão da Administração para atuar, pois nos atos administrativos vinculados os requisitos funcionais de legalidade são de reduzida, ou mesmo nula, importância. O desvio de poder é muito difícil de provar, uma vez que as situações em que este vício ocorre são normalmente dissimuladas pelos seus responsáveis, através da ocultação dos verdadeiros motivos na fundamentação do ato.

A violação de lei consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objeto do ato e as normas jurídicas que lhes são aplicáveis. A violação de lei deve de ser entendida num sentido restrito, porque em sentido amplo todos os vícios são violações da lei. A violação de lei origina-se normalmente quando, no exercício de poderes vinculados, a Administração decida coisa diversa do que a lei estabelece ou nada decida quando a lei mande decidir algo. Porém, a doutrina vem reconhecer que também no exercício de poderes discricionários pode ocorrer um vício de violação de lei, quando sejam infringidos os princípios gerais que limitam ou condicionam a discricionariedade administrativa, tais como os princípios constitucionais.

Como consequência da sua ilegalidade, os atos administrativos são normalmente inválidos. A invalidade do ato administrativo está regulada essencialmente nos artigos 161º a 164º do Código de Procedimento Administrativo (CPA), que aludem à nulidade e à anulabilidade.

O vício de usurpação de poder gera sempre nulidade (art. 161º/2/a) do CPA), já as ilegalidades reconduzíveis a qualquer um dos outros vícios podem resultar em nulidade ou em anulabilidade.

De acordo com o entendimento do Professor Marcelo Rebelo de Sousa e com o Professor André Salgado de Matos, o declínio da teoria dos vícios do ato administrativo leva a que o seu alcance hoje em dia seja fundamentalmente sistemático e pedagógico, mas deve reconhecer-se que, embora com os seus limites, esta tem resistido ao tempo.

Por seu lado, o Professor Vasco Pereira da Silva considera que esta teoria não é adequada do ponto de vista administrativo, já que afunila o pensamento jurídico-administrativo, podendo outros vícios também importantes passar ao lado.



BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, volume II, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2016

CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo, volume I, 10ª edição, Almedina, Coimbra, 2016

CAUPERS, João, Introdução ao Direito Administrativo, 9ª Edição, Âncora Editora, Lisboa, 2007

SOUSA, Marcelo Rebelo de; MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo Geral, volume III, 2ª Edição, Publicações Dom Quixote, 2009

SILVA, Vasco Pereira da, Em busca do Ato Administrativo Perdido, 1ª Edição, Almedina, Coimbra, 1995

Joana Cardoso, subturma 10, nº 57075

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